quarta-feira, 23 de março de 2011

quilometragem

Eu vou mandar meu motor para a revisão por que a quilometragem anda altíssima por aqui. Primeiro estive em Berlim e entrei em todas as bibocas indianas, nepalenses, tibetanas, vietnamitas, tailandesas, asiáticas e de outras orientalidades que pude. É que lá esse tipo de imigração é forte e esses restaurantes acabam sendo lugares hiper acolhedores para o frio e o bolso. São os lugares da cidade onde a maioria dos garçons fala inglês e você não corre o risco de tomar uma sopa cheia de coentro sem saber. A qualquer momento da caminhada você pode entrar num desses buracos rústicos e quentinhos ou num bar que parece a sala da casa de alguém muito legal e tomar uma cerveja nacional por um preço justo. Sim, ao contrário de São Paulo, em Berlim os preços ainda são honestos. É possível, com algum conhecimento de causa, se sentar para almoçar sem muito luxo e desembolsar por volta de sete euros, o que por aqui mal dá para prato do quilo da esquina. Eu não gosto de quilo, você pesar a comida já é esquisito, mas você deixar de pegar um punhado de mandioquinha e apostar no broto de feijão por que vai acabar sendo mais leve e barato, é o fim da picada. E não importa o quanto você ponha no prato, sempre dá mais que quinze reais, junta o café, a bebida, o serviço que não houve, pois foi você mesmo que se serviu e um tablete de chiclete, e o almoço saiu por trinta reais e você comeu...mal. Por isso me esbaldei no frio berlinense onde não pesei nenhum prato de comida e comi muito bem.

Também andei muito, aquela sensação do ar gelado na bochecha, a vontade de chegar em lugares quentes quando se está na rua e a de ir pegar um vento frio quando se está a muito tempo na calefação é uma delícia. Mas os Berlinenses estavam absolutamente enfastiados com o inverno. Pude ver claramente o quão sem saco eles estavam com o frio interminável e não era raro andar pelas ruas e ver pessoas paradas por horas de olhos fechados em pedaços de calçada ensolarados. Assim como ficam sem saco para a temperatura também parecem sem paciência para se vestir e a impressão que se tem é que eles saíram da cama, colocaram galochas por cima da calça de moleton, um casaco qualquer e rua! Na frente da minha janela tinham duas moças que iam todo dia ao telhado do prédio em calcinhas e cobertores e tomavam sol na laje a módica temperatura de zero grau. E eu em São Paulo, quando bate um vento na minha janela já me dá vontade de abrir um vinho e fazer um fondue. É minha profunda carência de inverno.

Foi um semana de frio, berlinenses simpáticos e enfastiados, algumas aulas muito interessantes de interpretação onde me vi obrigada a me expressar em inglês com algum vocabulário e mínima dignidade, algumas noitadas e tudo passou muito rápido.

Nove dias depois embarco para São Paulo (sem comentários com a falta de humanidade que é viajar no puleiro, digo, na classe econômica) e desembarco na van que vai me levar para São Simão e Matão onde fomos apresentar "Rancor- farsa intelectual" pelo circuito cultural paulista. Gosto dessas viagens, daqueles pastos, vastos, as árvores salpicadas na paisagem, as ruazinhas vazias, coretos, terraços e o ar que cheira a torresmo, terra e pó. Fazer teatro no interior é nunca saber o que esperar. Você pode chegar na cidade e ter a surpresa de cair numa pousada com cara de casa de vó ou num lugar que mais parece uma solitária sem janela, com uma televisão no teto e luz fria por toda parte. O teatros também, podem ser auditórios inóspitos ou antigos e mágicos teatros municipais de uma cidade sedenta por qualquer tipo de expressão artística. Foram quatro cidades até agora e nós nos apresentamos em teatros bons,ruins, para públicos esquisitos, inteligentes e até para uma sessão cheia de crianças. Não havia público e a moça da secretaria mandou um ônibus da escola pública direto para o teatro. Milagrosamente aqueles estudantes ficaram relativamente quietos e, penso eu, sem entender nada. Mas tenho fé de que dali, algum pré-adolescente saiu curioso, com uma ideia fixa diferente do que a realidade a sua volta costuma proporcionar.

Muitos quilômetros depois, de espaço aéreo, de horas de van, de frio, calor, colchões finos, de assistir monólogos berlinenses, de chegar a fazer peça até num santuário deslumbrante franciscano em Agudos na noite de lua mais cheia do século, depois de ter que me jogar no chão da coxia cada vez que um morcego passava por cima da minha cabeça, de fazer e desfazer malas como quem troca de roupa, me encontro novamente na cadeira rotatória da minha escrivaninha que tem vista para o minhocão. Daqui ouço Lobão e escrevo.

quinta-feira, 3 de março de 2011

Diário de Berlim

Primeiros dias

Dois dias após uma ressaca monumental (daquelas que você talvez tome uma uma vez por semana mas eu só tomo uma vez por semestre) saio pela Amaral Gurgel atrás do meu novo passaporte. Não sei exatamente qual foi o milagre que fiz para conseguir tirá-lo em seis dias sem visita pré agendada, só sei que fiz. Faço minha última refeição no Brasil, dou uma última olhada no Facebook (quem diria que isso viria a ter tanta importância)e corro para Guarulhos antes da chuva. Uma hora e meia na fila da polícia federal (e nós ainda temos a copa pela frente) e uma chuva de explicações no raio-x por conta dos litros de homeopatia que carrego na mala de mão, embarco para Zurique.

Um bebê a bordo. Um bebê irritante e milhares de milhas de choro depois estou acima dos Alpes suíços. Em duas horas e meia chego a Berlim. Tinha esquecido como Berlim é silenciosa e como as árvores ficam secas no inverno a ponto de parecerem fazer parte de um pôster na minha parede adolescente.

Adoro o frio. Adoro as cozinhas daqui, o pão preto, as salsichas e as casas aquecidas. Um tanta melancólico, se você tiver ou estiver com essa tendência.

Tenho o tempo de um banho e uma sopa tailandesa até chegar ao meu primeiro dia de aula, uma classe as seis da tarde sobre a técnica de Meisner. Fico nervosa, não conheço ninguém, não conheço essa técnica. Todos parecem conhecer e sem que eu me dê conta, já estou em roda fazendo parte de uma aquecimento ridículo. Todos os aquecimentos são ridículos.

Depois veio a técnica. O primeiro exercício consiste em estar na frente de alguém, observar e ser observado por esse alguém até que qualquer coisa honesta venha a sua mente. Então você deve dizer, o que vê na pessoa em questão, ou o que ela provoca em você. E aí seu parceiro vai repetir o que você disse e você vai repetir o que ele disse até que a frase se transforme e você também. É difícil explicar, mas é interessante. De fato é um pouco isso o que consiste o trabalho do ator. Ouvir o outro, deixar que o outro te afete, afetar o outro, ser honesto em todas as suas ações, estar aberto. Mesmo que seja a septuagésima vez que você está repetindo aquilo. O que eu mais gostei foi perceber que qualquer pessoa, qualquer ser humano que pare na sua frente e você esteja condenado a observá-lo, qualquer, qualquer um tem algo notável. E você pode passar batido por uma multidão, mas pode colocar uma lente de aumento em alguém de vez em quando.

Eu me dei muito mal no primeiro exercício, o professor disse, entre outras coisas, que eu segurava a bola, que ninguém gostaria de jogar ping pong com alguém que segurasse a bola na mão toda toda vez, antes de jogar a bola de volta. Eu nunca tinha visto aquelas pessoas, alunos do mundo todo, mas morri de vergonha deles. Voltei para o meu lugar e duas horas depois resolvi tentar de novo. E decidi ser verdadeira, e dizer as coisas mais absurdas que eu pudesse pensar, sem pensar muito. E rebater, estar atenta. Despojada. Ali. Então alguma coisa aconteceu. E foi impressionante.