(último plano)
Moscou, primeiro de abril
Muitos dos integrantes já
foram eliminados e voltaram para o Brasil. Alguns ainda estão no paredão:
eu (continuista, atriz,
maquiadora, roteirista e assistente de arte),
Manu (atriz, continuista e
maquiadora),
Charly (diretor, produtor,
roteirista e figurante)
Soraia (musa),
Eliane (produtora/operadora de milagres),
Grabinho (melhor assistente
de direção do mundo, carregador, camareiro, continuista, diretor de arte,
beijoqueiro e terapeuta),
Alina (atriz, tradutora e
assistente de produção),
Samori (diretor de
fotografia, câmera, carregador, dir. de arte),
Carpa, nosso logger,
Pablo( camera, still,
conectadinho e figurante)
e Zon, do som,
resistimos bravamente!
Moscou é muito poluida,
seca e suja. Está entre as quatro piores cidades para respirar do mundo. A água
daqui é branca, acho que tem muito calcário, ou cloro. Sei que minha pele está
muito seca e eu acumulo algumas feridas (de secura) no braço e nas coxas, não
importa a quantidade de creme que eu passe. Também acumulo roxos dos tombos sem
fim. Meus cabelos brancos duplicaram neste processo e eu estou a beira da
exaustão. Mas estou feliz. Gosto cada vez mais do que fazemos, e o Charly,
apesar de ficar me chamando de Didi (Mocó) e cachorrão (por causa da minha
lealdade e carência, segundo ele) também está feliz.
Como quase todos foram embora, deixamos
para o final as cenas mais densas entre eu e Manu. Foi horrível fazer a cena da
briga: a gente se pegou no tapa, e no fim a Manu atacou em mim um livro de
poesia soviética mais gordo que a Barsa, que pegou no meu tornozelo, somando
mais um roxo para minha coleção. Eu fiquei com uma taquicardia por mais de duas
horas de tanta raiva que passei. Foi horrível (embora o Charly ache que a gente
tenha adorado) agredir tanto minha amiga.
Moscou, 2 de abril
Eu me sinto bem a vontade
aqui. Não tenho mais medo da Rússia, dos russos. Eles podem fazer a cara mais
feia do mundo, cuspirem as frases mais grossas do dia, eu não tô nem aí,
acostumei. Gosto deles. Eu entendi e aceito como eles são. Hoje fui fazer as
cenas de amor com o Sasha. O Misha, ator que interpreta o Sasha fake, me disse
que nunca tinha beijado em cena, e estava muito nervoso. Eu tentei acalmá-lo,
mas na hora do ação ele ficou tenso e apertou minha cintura num tanto que
fiquei com mais um roxo… e me mordeu também.
Coitado, ele estava confuso: tá
convidando a Manu para sair desde o dia que nos conhecemos, e agora quando
encontra ela no set é obrigado a fazer cenas de amor comigo. Ele ficou
atordoado, e no meio da diária já tava me chamando de Manuela. Me diverti tanto
com tudo isso. No fim do dia filmamos a cena do encontro na neve no parque Puschckin.
O Charly pediu que fizessemos uma espécie de tango na neve, e claro, lá fui eu
para o chão mais uma vez. Dessa vez com o Sasha fake a tiracolo.
Não posso reclamar: estou
filmando, na Rússia, uma história originalmente minha, entre amigos. É muito gratificante tudo isso, apesar do perengue. Agora já consigo pedir meu ovo
frito, ao invés de cozido, para Natasha, a moça que serve nosso café. Outro dia
tomei duas doses de vodka come ela, que chorou, dizendo que ia sentir nossa falta
quando fossemos embora. A tarde fomos ao parque Gorgki e fazia um frio
terrível. Frio e vento, que é a pior combinação que existe. Eu e Manu, não
conseguíamos ficar mais de dez minutos no set e saímos correndo em direção ao
café sob os protestos de nosso diretor. Filmar no frio queima o cartucho da
disposição numa tacada só. O cansaço que dá é enorme, e todos ficam
imprestáveis depois de uma cena dessa. Seguimos.
Não há tempo para nada. O
tempo que sobra é para lavar os cabelos, fumar um cigarro, ter uma nova ideia.
Não sei mais o que é o Brasil, qual a cor da parede da entrada do meu prédio,
como é a voz do Willian Bonner ou o que aconteceu com o avião que caiu. Não
tenho ideia do que se passa na Criméia, só penso no próximo plano, na
continuidade do figurino, na incoerência da personagem, em dar conta, em dar
conta, em dar conta de tudo isso.
)abre parênteses(
Meu quarto é o mais bonito
do alojamento, e por isso é nosso cenário. Isso me deu o previlégio da melhor
acomodação, mas também me trouxe alguns pequenos incômodos. Cada vez que
filmamos nele alguém desliga a geladeira e esquece de religar (já perdi um
pacote de salmão defumado e um pote de queijo feta nessa). As coisas pequenas
desaparecem e eu passo sempre dois ou três dias atrás de um pé da meia, de
brinco ou de uma blusa em continuidade toda a vez que filmam lá. Set é terra de
ninguém. Mas nada superou ao dia de hoje: fui tomar a água de uma garrafinha e
senti um gosto estranhíssimo. Olhei para o plástico da garrafa e a água estava
turva e cheia de vermes. Mini minhocas em movimento de cor acinzentada.
“Charly, acabei de beber vermes!!!!!!!”. “Joga essa água for a toma água limpa.” Eu jogo a água fora.
“Charly, é sério, ingeri vermes.” Tento vomitar e não consigo. Ligo para meu
pai no Brasil, uma certa tensão no set. Meu pai me pergunta aonde está a água
caso seja preciso mandar para a análise. “Joguei fora pai, o diretor mandou!”
Meu pai me manda para o hospital, diz que os medicos daqui conhecem os germes
daqui. Pergunta o quanto de minhoca ingeri. O mal humor toma conta de mim.
Tanto cansaço, tanta coisa pra rodar e agora esses vermes dentro de mim. E se
for grave? E toca eu e Alina para um centro médico. O plano resolve não cobrir.
Horas de discussão até eu começar a gritar em português e a raposa esperta da
Alina dobrar os russos até eles me atenderem. Um medico mal humoradíssimo faz
cara de cu. Você comeu vermes, e daí? Como se eu tivesse comido pão com geléia.
(fecha parênteses)
Meia hora para colocar um
mês de história de volta à mala. Me despeço de Asa, a gata. Hoje embarcamos num trem para São Petersburgo
para rodar as sequências finais. Essa cidade é um colírio. As pessoas são
lindas e elegantes. Até a neve aqui é mais chic, cai toda certinha e delicada no
chão. Tem rio e mar, e por isso é mais fria. As pessoas são menos coléricas que
em Moscou, os restaurantes são melhores, mas seu eu tivesse que escolher,
Moscou seria minha eleita. Estamos hospedados num hostel charmosíssimo e é um
certo alívio ter saído do nosso alojamento/asilo. Desde o começo do filme o
Charly queria filmar um encontro nosso com alguma figura local que pudesse nos
contar mais sobre a transição da Rússia comunista para a capitalista, entre
outros assuntos. O eleito foi Nikolay, um grande artista plastico daqui. Fomo
ao seu atelier com vista para o mar. Ou rio, não sei precisar. Gostei muito
dele, que também é diretor de cinema e adora falar. Conseguiu falar mais do
que eu na cena, para alívio do meu diretor, que está tentando calar a boca da
minha personagem há tempos.
Na saída vi o Charly num canto com o celular no
ouvido. Tinha alguma estranheza na cena e eu olhei pra cara dele com cara de
“Que é que foi?”. “O Zé morreu.”, ele respondeu numa tristeza absoluta. Charly
era grande amigo do Wilker e desde que começamos o roteiro, anos atrás, ele queria
homenageá-lo com uma cena. Foi difícil
para ele terminar a diária com o peso da notícia. Seguimos.
Até a última gota. Enquanto
parte da equipe ficou em Petersburgo comemorando o ultimo plano, eu, Charly,
Eliane, Anastácia e Pablo voltamos no trem noturno. Era uma cabine de primeira
classe, e eu não quero nem imaginar o que seria a segunda. Foi triste dar adeus
para a equipe que ficou, especialmente para Soraia, que não verei tão
cedo. Pisei em Moscou em ruínas, imunda, tomamos café da manhã e inutilmente
tentei disfarçar o desastre na minha cara com alguns gramas de corretivo.
Andamos um par de horas filmando pelas mais belas estações de metrô. Tive meia
hora para tomar um banho antes de pegar o avião da volta para o Brasil. Talvez pelo cansaço, pressa ou loucura, ou um parafuso espanado na minha cabeça, eu, num
ímpeto sem precedentes gasto metade do cachê para fazer um upgrade para a
executiva.
Madrid, 6/7 de abril
A sala vip parece um oasis
no meio do deserto. O perengue do ultimo mês foi tamanho e eu fiquei tão
deslumbrada com a abundância de comes e bebes que começei a enfiar mini
garrafas de champanhe na minha bolsa. Fui abduzida por uma outra Martha, mais
desesperada, despudorada e sem noção que eu, mas tinha que fazer valer cada
centavo do investimento. Foi um vexame. Queria ainda tirar fotos por lá, mas
todos pareciam estar confortáveis em suas próprias peles, e tão acostumados com
tudo aquilo, que tive que me conter.
A poltrona do avião é algo
a parte. Geralmente passo chorando pela executiva a caminho da terceira classe,
mas desta vez nem olhei para trás. Me aboletei na cápsula/poltrona e me enchi
de cava espanhola e travesseiros. Achei muito injusto ter que pagar uma fortuna
para viajar minimamente confortável e me dei conta que a classe econômica é simplesmente
desumana. Ao invés de aproveitar ao máximo o luxo temporário, já começei a
sofrer pensando na minha próxima viagem no poleiro do avião. Acordo de
madrugada com o filme passando na minha cabeca. Vermelho russo. O silêncio da
executiva é bálsamo, e todos pagaram muito caro por ele, por isso não ousam
quebrá-lo. Cruzo o oceano sem turbulências, em estado de catatonia.
A fila da polícia federal
não nega o GPS: Guarulhos. Passo no free Shop para fazer hora. Minha mãe vem me
buscar no aeroporto; minha mãe sempre atrasa. O filme passa minha cabeça;
cento e noventa horas de material. Dei tudo de mim em cada uma delas.
Soraia está presa em
Moscou. O visto venceu e nem a produção nem a Portuga perceberam. Agora Soraia
não pode sair, está presa na casa. Free Soraia, o povo em Portugal grita. Chego em casa. Caco foi
embora ontem, alugou meu AP por um mês. Há um desenho dele na geladeira
agradecendo a estadia. Sorrio. Caco deixou para trás meio pacote de pão,
garrafas de vinho, calda de marshmallow, chocolate e caramelo. Penso que as caldas serão muito
úteis no momento oportuno. Não sei qual calda, digo, mala, abrir primeiro.
Minha orquídea deu
flor. Sorrio. Nunca estive tão cansada. Caio num sono paleolítico e acordo sem
saber onde estou. Um minuto se passa e eu continuo sem saber. Olho fixamente para
a caixa de maiôs e cangas. Estou em casa, finalmente realizo. Procuro a câmera.