domingo, 26 de outubro de 2014

Que amor de eleição!



 Ele ouvia Cartola meia hora antes de sair para votar. Já ela tinha acabado de decidir que iria com roupa de ginástica afim de emendar sua participação na festa da democracia com a caminhada power que idealmente queimaria 450 calorias.

Os dois votavam no Colégio Santa Clara. Na mesma sessão. Ela estava parada na frente do painel, confusa com o número dos deputados. Ele tinha tudo anotado  na cabeça e passou por ela arrastando um olhar faminto: era a mesária da eleição anterior. Ele a tinha achado linda na ocasião, mas ela estava tão mal humorada que não conseguia enxergar nem um palmo a sua frente, quanto mais o pretendente na cadeira ao lado. Tudo o que ele conseguiu foi um par azedo de frases.

Ele: “Que azar ter caído nesse sorteio, não é?”
Ela: “Pelo menos sei que nunca vou ser convocada a prestar serviços militares para esse país.” 

E saiu enfurecida com seu ticket-refeição que não daria nem para a salada no quilo vizinho.

E agora, dois anos depois, ele  admirava as batatas de sua perna que escapavam da calça legging. Depois de anotar o número de seus candidatos na palma da mão esquerda, ela se dirigiu à fila da sessão 34. Ele foi atrás, tentando escanear os garranchos tortos em tinta azul. Mas ela não parava de mexer os braços, batucando as mãos nas coxas, cantarolando a música que entrava pelo fone de ouvido; estava solar naquele dia. Como abordar uma mulher que não para de se mexer e não ouve nada a sua volta?

Ele passou toda a apuração pensando nela, e apesar de suas convicções políticas e do seu ateísmo, rezou para que houvesse segundo turno. E houve. Agora era com ele. Muniu-se de jornal, óculos escuros, um livro, um sanduíche de atum e foi cedo para o Santa Clara. Depois de votar sentou-se no banco próximo à sessão e esperou. Ela chegou quinze minutos antes de fechar, esbaforida, de ressaca, quando ele já tinha perdido as esperanças achando que ela tinha passado por lá justo na  hora que ele foi fazer xixi. Ou que ela tinha ido à praia e iria justificar o voto. Mas ela veio, e ele a pegou na saída e a convidou para um café.

A fome era tanta que ela devorou na sua frente um hambúrguer, uma vitamina de mamão e uma broa doce em quinze minutos. Ele ansioso olhava para aquela boca carnuda que não parava de mastigar; ela era um tesão que mastigava, um tesão que falava e tinha opiniões, um tesão que andava, sorria e votava. Um tesão. Ele não consumiu uma gota d’água, mas pagou a conta com gosto. Começaram a namorar e combinaram nunca revelar seu voto um ao outro. Passaram aquele fim de ano na montanha, o carnaval na praia e a páscoa na cidade. Ele passou a andar com ela aos domingos, ela passou a ouvir Cartola com ele aos sábados de manhã. Tinham folga uma vez por semana e dormiam juntos nas outras seis noites. Ele ficava louco quando ela desligava seu celular na noite na única noite que não se viam, e ela se enfurecia com ele por razões mais abstratas.

Um ano depois ela o pediu em casamento. Ele perguntou pra quê, estava tão bom daquele jeito. Ela segurou o choro e foi embora. Ele ficou a ver navios, trancado em casa e pensando que o mundo era mesmo um moinho que triturava sem piedade seus sonhos mesquinhos. Ela desviou solenemente de toda e qualquer tentativa de reconciliação.

Foram doze meses tão insuportáveis, que é como se a propaganda eleitoral gratuita durasse o ano todo. Todos os dias. Mas quando veio a eleição para prefeito ele bolou um plano infalível e foi para o Santa Clara cedo. Óculos, sanduíche de queijo, um celular com mil e uma utilidades num bolso e um anel no outro. De uma coisa ele tinha certeza: os candidatos eram péssimos e aquela eleição não mudaria em nada sua cidade. Talvez piorasse. Mas se ele pudesse passar os próximos quatro anos de desgosto político ao lado dela, ah, seria tão bom!