Os dois votavam no Colégio Santa Clara. Na mesma sessão. Ela
estava parada na frente do painel, confusa com o número dos deputados. Ele
tinha tudo anotado na cabeça e passou
por ela arrastando um olhar faminto: era a mesária da eleição anterior. Ele a
tinha achado linda na ocasião, mas ela estava tão mal humorada que não
conseguia enxergar nem um palmo a sua frente, quanto mais o pretendente na
cadeira ao lado. Tudo o que ele conseguiu foi um par azedo de frases.
Ele: “Que azar ter caído nesse sorteio, não é?”
Ela: “Pelo menos sei que nunca vou ser convocada a prestar
serviços militares para esse país.”
E saiu enfurecida com seu ticket-refeição que não daria nem
para a salada no quilo vizinho.
E agora, dois anos depois, ele admirava as batatas de sua perna que
escapavam da calça legging. Depois de anotar o número de seus candidatos na
palma da mão esquerda, ela se dirigiu à fila da sessão 34. Ele foi atrás,
tentando escanear os garranchos tortos em tinta azul. Mas ela não parava de
mexer os braços, batucando as mãos nas coxas, cantarolando a música que entrava
pelo fone de ouvido; estava solar naquele dia. Como abordar uma mulher que não
para de se mexer e não ouve nada a sua volta?
Ele passou toda a apuração pensando nela, e apesar de suas
convicções políticas e do seu ateísmo, rezou para que houvesse segundo turno. E
houve. Agora era com ele. Muniu-se de jornal, óculos escuros, um livro, um
sanduíche de atum e foi cedo para o Santa Clara. Depois de votar sentou-se no
banco próximo à sessão e esperou. Ela chegou quinze minutos antes de fechar,
esbaforida, de ressaca, quando ele já tinha perdido as esperanças achando que
ela tinha passado por lá justo na hora
que ele foi fazer xixi. Ou que ela tinha ido à praia e iria justificar o voto.
Mas ela veio, e ele a pegou na saída e a convidou para um café.
A fome era tanta que ela devorou na sua frente um
hambúrguer, uma vitamina de mamão e uma broa doce em quinze minutos. Ele
ansioso olhava para aquela boca carnuda que não parava de mastigar; ela era um
tesão que mastigava, um tesão que falava e tinha opiniões, um tesão que andava,
sorria e votava. Um tesão. Ele não consumiu uma gota d’água, mas pagou a conta
com gosto. Começaram a namorar e combinaram nunca revelar seu voto um ao outro.
Passaram aquele fim de ano na montanha, o carnaval na praia e a páscoa na
cidade. Ele passou a andar com ela aos domingos, ela passou a ouvir Cartola com
ele aos sábados de manhã. Tinham folga uma vez por semana e dormiam juntos nas
outras seis noites. Ele ficava louco quando ela desligava seu celular na noite
na única noite que não se viam, e ela se enfurecia com ele por razões mais abstratas.
Um ano depois ela o pediu em casamento. Ele perguntou pra
quê, estava tão bom daquele jeito. Ela segurou o choro e foi embora. Ele ficou
a ver navios, trancado em casa e pensando que o mundo era mesmo um moinho que
triturava sem piedade seus sonhos mesquinhos. Ela desviou solenemente de toda e
qualquer tentativa de reconciliação.
Foram doze meses tão insuportáveis, que é como se a
propaganda eleitoral gratuita durasse o ano todo. Todos os dias. Mas quando
veio a eleição para prefeito ele bolou um plano infalível e foi para o Santa
Clara cedo. Óculos, sanduíche de queijo, um celular com mil e uma utilidades
num bolso e um anel no outro. De uma coisa ele tinha certeza: os candidatos
eram péssimos e aquela eleição não mudaria em nada sua cidade. Talvez piorasse.
Mas se ele pudesse passar os próximos quatro anos de desgosto político ao lado
dela, ah, seria tão bom!
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