quarta-feira, 21 de novembro de 2012

ternura pelos homens na academia


Ternura pelos homens na academia. Não de letras. De ferros. Os homens com suas cores neon, seus bíceps, tríceps, psoas. Os homens que batem as mãos uns nos ombros dos outros saudando músculos, ossos, força. Consumindo e falando proteínas. Ternura por esses homens tão doces em sua boçalidade, tão honestos em suas vontades. Parecem viver no intervalo entre uma coisa e outra, no recreio da vida adulta. Os homens que se divertem entre si numa espécie de confraria da qual nunca farei parte no canto mais à esquerda do salão. Perto dos halteres, das rodas de metal. Passo por eles como quem caminha na parte mais densa da selva: as conversas entrecortadas pelos exercícios, a camaradagem, tatuagens desbotadas e esdrúxulas, os pinos, clavículas e uma cartilagem mais desgastada no joelho direito. E como se roubasse o ar alheio, inspiro por um instante a alegria que paira entre suas cabeças antes de voltar para minhas obrigações. Abaixo o rosto no bebedouro de metal e sorrio. Se eles não fossem tão ternos, tão bobos, simples e adoráveis, eu morreria de inveja.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

E se a gente?


Se eu estivesse em Paris agora em excelente companhia seria sim primavera. Eu e minha excelente companhia do sexo oposto atravessaríamos a rua com alguma altivez, por que apaixonados tem altivez própria, luz própria, ritmo. Eu diria para minha excelente companhia com a barba por fazer: tenho fome. Ele riria: você e sua fome. Que posso fazer? Eu retrucaria num pretérito muito aquém do perfeito. "Nada, vamos comer.", minha excelente companhia com a barba por fazer em camisa de linho mal passado me puxaria em direção ao supermercado e nós compraríamos uma garrafa de vinho tinto a 6 euros, um pacote de cerejas maduras a preço de banana, uma bandeja de salame, queijo e uma grande e crocante baguete. Minha excelente companhia com a barba por fazer em camisa de linho amassado e um sapato formidável seguraria minhas ancas na fila do caixa e diria: nosso primeiro piquenique.
"Meu Deus, não temos uma toalha xadreza!"eu gritaria, e ele com seu sorriso: on s'en fout! Sim , foda-se, completo eu, vamos usar sua camisa no lugar da toalha. E me encanto por uma senhora em conjunto de tailleur cor-de-rosa-bebê e chapéu combinando que aguarda na fila do caixa ao lado, enquanto minha excelente companhia, sua barba camisa e sapato, e eu vejo que ele tem o pensamento longe, entrega uma nota de vinte euros para a moça. Ele segura minha mão, “cuida das cerejas”, ordena e voltamos para a rua. Eu e minha excelente companhia de barba por fazer camisa amassada olhos doces e brilhantes como um alazão atravessamos um grupo de crianças entre cinco e oito anos vestidas em uniformes encardidos na saída da escola. Pequenos parisienses eu digo,  ao que minha adorável companhia sorri: futuros parisienses mal humorados, retruca. Minha excelente companhia ri para dentro enquanto rio para fora e sei que o ar que utilizamos para nos comunicar se encontra e se mistura em algum lugar no meio do caminho entre nossos pulmões e a estratosfera. Olho para a garotinha francesa que carrega uma mochila maior do que ela, como era chato usar uniforme, penso. Depois repito o pensamento em voz alta, feliz por estar de vestido, sapatos e bolsa a tiracolo. Minha companhia em barba por fazer, sapato de couro, olhos de cavalo, oscila entre um grande coração e sua ironia pontiaguda enquanto fala em voz grave baixa: tem um parque bonito ali. Minha mão não transpira há anos, mas tenho medo que o barulho da rua seja menor que os saltos que meu coração dá. Meu coração é mesmo um atleta, penso dentro do vestido coral, sapato e bolsa conhaque. Me empresta a baguete? digo, e só nos falta uma bicicleta para parecermos objetos de cena de um filme da Nouvelle Vague. Eu em coral e minha excelente companhia com  sua ironia pontiaguda, calça e cabelos cor-de-burro-quando-foge adentramos um parque tipo folha de calendário sem um só eletrônico nos bolsos. Nosso pequeno mundo não tem wifi, sinal de celular ou feed de notícias. Quebro a ponta da baguete e mastigo com furor um pedaço de pão enquanto minha adorável companhia com olhos de alazão, barba por fazer, sapatos formidáveis e mãos de agricultor procura um abridor de vinho no café mais próximo. Aproveito para montar o melhor sanduíche do mundo, e sim, arranco um punhado de grama e coloco entre  o queijo e o pão. Ou não, melhor não. E eis que volta minha linda companhia dentro de sua camisa mal passada, passando suas mãos de agricultor na barba que está por fazer, me olhando com seus olhos tristes de alazão, pisando firme em seus sapatos aceitáveis e sorrindo como se fosse o sacana que ele não é. Traz um abridor na mão. E por que você não abriu a garrafa lá?, pergunto. "Mas vai que a bêbada aqui resolve comprar outra garrafa no caminho...", ele ri. "E afinal, ganhei o abridor de cortesia." Eu também te daria um abridor, meu bem, se você fosse ao meu café com essa cara de excelente companhia que só você tem. Ao que meu par me pede como se me pedisse em casamento: 

“E se a gente fizesse tudo diferente? Tudo diferente do que já foi feito até hoje! Eu sei, eu sei”, ele emenda, “que talvez a gente acabe ainda mais igual por conta disso. Eu sei, mas e se? E se? E se a gente?” 

Eu sei do que ele está falando, minha adorável companhia, meu par, com sua barba pontiaguda, seu humor por fazer, seus olhos amassados, sua camisa formidável, seus sapatos cor-de-alazão e seu coração de agricultor. Minha excelente companhia quer reinventar a roda, o quadrado, o triângulo isósceles, o amor. “E se? E se a gente?”. A frase repercute em todos os cantos tristes e felizes do meu corpo, em cada quina da minha euforia. E antes que ele possa ter a chance de proferir o próximo “vamos”, mesmo sabendo que o mais provável é que fracassemos, antes mesmo que ele possa tomar ar para o começo da próxima frase, salto por cima dele e tasco-lhe um beijo afobado e confiante, derramando metade da garrafa de vinho que escorre por cima dos cabos de cereja, grama e farelos de pão. “E se?". Agarro sua nuca com minhas duas mãos e digo: vamos.

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A primeira confissão


A primeira confissão, por Martha Nowill

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MARTHA NOWILL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando eu tinha oito anos, tudo o que queria era uma Bic de dez cores e sentir Deus dentro de mim. Me frustrava não poder entrar na fila da comunhão com os adultos.
Só me restavam as funções menos nobres de cumprimentar a igreja inteira quando o padre mandava saudar a "paz de Cristo" e a de depositar dinheiro na cesta de doações. Obrigações que cumpria com a eficiência de um coroinha, já que, no tempo restante da missa, eu me abandonava, nos bancos gelados de madeira, à espiral das minhas inquietações infantis.
Arquivo pessoal
A atriz Martha Nowill, aos oito anos, na primeira comunhão, em 1989
A atriz Martha Nowill, aos oito anos, na primeira comunhão, em 1989
Tinha perto de casa uma igreja que eu achava muito feia. Era toda de madeira e pedra, sem cor nenhuma, sem dourado na borda, sem santo nem auréola, nem qualquer umas daquelas imagens assustadoras de lanças e dragões que eu adorava observar durante o sermão. A gente tinha se mudado havia pouco, e foi lá que passei a imaginar, a cada domingo, como seria meu encontro com Deus.
Se a gente mordesse a hóstia, sairia sangue de Jesus de dentro? E se a gente comesse muito, o corpo de Cristo iria se misturar à macarronada de domingo? Essas questões me atormentavam, e eu não via a hora de ser adulta para dormir tarde, ir ao baile de Carnaval, comungar e matar minha curiosidade. As noitadas teriam de esperar, já Deus eu conheceria em breve, nas aulas de catequese.
Um homem que abria o mar com um cajado, uma mulher que engravidava de uma pomba, um planeta inundado e uma arca com todos os bichos dentro, um grande pai que era três e que ainda por cima me amava, embora eu talvez não merecesse. De que mais uma criança de oito anos precisava?
De um vestido. E começavam os burburinhos na escola em torno do tema. Minhas amigas já tinham ido à costureira meia dúzia de vezes, já tinham as pérolas do bordado, as rendas no colarinho, ao passo em que eu era enrolada no caos da agenda da minha mãe.
Ela estava grávida de muitos meses, e toda atenção que deveria estar voltada à minha primeira comunhão era diretamente desviada para a chegada da caçula. "Não se preocupe, é uma bata de seda lindíssima", ela dizia. E eu repetia no recreio: "Ainda não experimentei, mas é uma bata de seda lindíssima". Por algum motivo a palavra seda causou certa impressão nas colegas e em mim. Seda, seda, seda. Aquilo me confortava.
Minha madrinha, a par da minha ansiedade, me arrumou hóstias não consagradas para que eu pudesse matar a curiosidade do gosto. "Essas se pode comer, ainda não são o corpo de Cristo", ela me disse, colocando algumas na palma da minha mão. Devorei-as por gula, mas sem grande deleite. Apavorada, pensava: "Ainda bem que não são o corpo de Cristo, imagina se deixo Jesus cair no chão..."
Para ir ao encontro de Deus eu precisava ainda de uma lista de pecados. Às vésperas da minha primeira confissão, passei uma tarde de sábado, em vão, tentando enfileirar alguns nas linhas do papel. Por fim, inventei um ou outro, com medo de que o padre não acreditasse na minha inocência.
No dia 2 de dezembro de 1989, na igreja de Santa Terezinha, me aboletei num banco com minha bata branca, que de seda nada tinha. Eu era uma espécie de franciscana com uma cruz de madeira pendurada ao pescoço e uma coroa de flores que me pesava como se fosse de espinhos.
As meninas eram minidebutantes, e só não me aborreci mais porque, de algum jeito torto, acho que intuí que minha veste simplória resistiria melhor à atemporalidade do álbum de fotos. E elas não escondiam a decepção. "Mas não era de seda?", repetiam enquanto desfilavam seus vestidos rodados, rendados, bordados.
Mas o mais importante era que finalmente eu era digna da visita de Deus. Isso me enchia de vaidade, amor e alegria. Não senti nada quando a hóstia começou a derreter na língua, mas senti Deus explodindo nas minhas veias a cada passo da ida ao altar, em cada gesto dentro do figurino branco, diante das câmeras VHS, dos pais, tios e curiosos da plateia cheia. Minha primeira caminhada como atriz.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

teria graça se fosse de outro jeito?





É um filme. Tem o personagem do homem que vai ao cassino. É um meio de tarde e ele nem está tão arrumado quanto pediria a situação.  Num único ato de imprudência ele junta todas suas fichas, as pretas, verdes, vermelhas listradas de branco, todo o seu carrossel milionário de cores e aposta tudo numa jogada só. Lembra dessa cena?  De alguma parecida? O homem sente um frio enjoativo na barriga, um sopro no coração, uma câimbra nos dedos da mão. Uma senhora ao lado mordisca a segunda azeitona do Dry Martini enquanto lembra da última vez que teve tanta ousadia. 

Ele vai perder, arrisca o palpite. 

Uma dupla de turistas japoneses ri. O funcionário da casa repara que  o pulso de sua camisa branca está consideravelmente amarelado enquanto recolhe guardanapos amassados.

A roleta gira vagarosamente aos olhos do apostador, rápida aos do expectador. Metade da sala do cinema acha que ele vai perder. A outra metade torce pela sorte do herói. O homem se contorce em cálculos matemáticos renais enquanto o cheiro de fritura escapa da cozinha do cassino. A medida que a roleta gira ele dissolve. E sentir é o que basta para ser.  Desavisadamente, é o que eu quero que você faça. Aposte tudo o que você juntou na vida inteira. Em mim. Veja bem, eu não sou aquela moça do casaco de pele que fica na ponta da mesa de feltro verde e que vai beijar seus dados para te dar sorte. Eu não sou a fortuna que você está prestes a ganhar ou perder. Eu sou a própria roleta. E nós não estamos na tela do cinema. Ninguém torce contra ou a favor de nós.  Eu não posso te garantir nada. Mas não consigo te pedir menos do que tudo.

segunda-feira, 14 de maio de 2012

só garotos




Amigo é um negócio importante. Fazer um filme sobre amizade, entre amigos, é um negócio sublime.
Tenho vivido em absoluta suspensão. Não tenho mais casa, meu gato não pode ficar comigo, não tenho mais namorado, não tenho uma garagem. Tenho um carro amassado e um filme para fazer. Tenho uma mãe que me abriga provisóriamente. Espero. E uma amiga que me empresta a garagem. Tenho projetos, vontade de concretizá-los, preguiça de produzí-los e um saldo bancário a beira da catatonia. Tenho minhas orelhas, meus pés, a vida: como diz aquela música que a Nina Simone canta e faz meu coração disparar quando escuto. De modo que enquanto não sei o que irá acontecer, tenho gostado de viver assim, quase no espírito cigano vindo do deserto do rajastão e a ideia de pertencer a uma trupe mambembe de teatro saída de um filme de Bergman. A verdade, é que tudo está em suspensão. O que acontece é que às vezes nossa percepção em relação a isso fica mais aguda. E isso pode ser libertador. E eu prometo solenemente manter-me fiél a isso, mesmo estando empregada, contratada, casada, cronogramada, com filhos, com milhões de compromissos, com uma casa cheia de garagens para gerenciar. Eu prometo manter meu coração, meus desejos e meus dias em leve suspensão, ainda que eles pareçam enraizados na terra mais próxima a mim.

quinta-feira, 12 de abril de 2012

fato

-o 3G da tim é uma piada
-cara
-o 3g da tim não resiste a uma garoa paulista
-São Paulo sem chuva judia dos nossos pulmões
-com chuva judia de todo o resto
-gentileza é ouro
-é deselegante entrar no carro de alguém falando no celular e assim permanecer durante todo o percurso
-amor não tem especificidade
-não, eu não tenho cartão Mais
-o verbo instagramar deixou o googlar obsoleto
-obsoleta sou eu, no meio da chuva e da pista de vinte poucos anos do lolapalooza
-eu não tenho mais vinte e poucos anos
-não, eu não estou em cartaz
-mato ruim cresce depressa
-enquanto a gente atua, dança e sapateia, tem um pessoal ganhando muito dinheiro por aí
-ainda não consegui o contato desse pessoal para futuros patrocínios
-eu hei de conseguir
-não, eu não tenho what´s up
-por que não
-quem tem vergonha na cara ruboriza
-mascando chiclete qualquer um tem o ar estúpido
-eu só masco chiclete escondida
-um bom haikai pode salvar o dia
-um cigarro pode salvar a foto
-nem um grande ator pode salvar uma pessima ideia
-mas um vestido pode salvar uma mulher
-ideia não tem mais acento, de resto, creio não ter absorvido as novas regras da língua portuguesa
-em voz alta, a língua mais linda do globo é o italiano
-pena que aprender espanhol seja mais produtivo
-lindos os italianos também
-não, a balança não está desregulada, você é que comeu demais
-como é bom comer
-como é bom ter amigos
-como é bom conseguir uma carona fim de noite
-como é bom subir os vinte e três andares sem ninguém no elevador
-como é bom cinema, pipoca e mãos
-como é ruim a projeção do Bristol
-eu deveria parar de ir ao Bristol
-eu deveria parar de ir em testes de publicidade
-eu nunca mais vou num teste de publicidade
-a não ser que o cachê seja mais de quinze mil
-como eu sou barata
-haja dinheiro para ser solteiro
-haja tempo para ser polígamo
-haja fé para o amor
-haja amor para descartar a fé
-eu acredito em mim, em bruxas, duendes, ETs e café turco
-no mais, depois de entupir os bueiros, as águas correm para o mar

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

o dia em que eu fiz as malas para sair de casa

(eu e os pinguins)


O dia em que eu fiz as malas para sair de casa foi antecedido por aventuras exóticas, exuberantes e um carnaval paulistano nas trincheiras de uma escola de samba.

Comecei o ano num SPA linha dura no interior de São Paulo a fim de emagrecer os quilos que estapearam minha cara na última fez que me vi na televisão. Ser atriz e escrever suas medidas em todos os termos de compromisso, além de ser um saco, te faz lembrar o tempo todo o quão inadequada é a dobradinha tv + pipoca durante a madrugada.

Então fomos ao SPA, eu e meu corpinho.

Chegando lá o médico me mediu, me pesou, me fitou e perguntou seu me considerava normal, com sobrepeso ou obesa. "Eu me considero bem normal.", respondi, "mas acho que para o mundo atual estou mais para o sobrepeso.". Não, ele não riu da minha piadinha e ainda me colocou numa dieta, pasmem, de 300 calorias por dia. Sim, aquela garfada de arroz com purê de mandioquinha já contabiliza isso facilmente. Agora, divida essas calorias entre seis refeições de diárias compostas de vento, clorofila, aspartame, gelatina e uma média de sete grãos de arroz no prato do almoço.

É por isso que o SPA é um local onde se fala basicamente sobre: COMIDA. Não há lugar melhor no mundo para passar fome e trocar receitas, dicas de restaurantes, segredos e preços do mercado gastronômico. É claramente um ato de tortura, onde boa parte das pessoas volta a engordar quase o dobro do que emagreceu, quando sai de lá.

Intimidade é uma coisa que se pega fácil também, já que ninguém tem o menor pudor em te perguntar seu peso, seu índice de massa corporal, seu resultado da bioempedância, se seu intestino funciona bem ou não, se seu xixi tá muito amarelo, enfim, essas coisas que na mesa e na vida real não se fala, mas no SPA, é lugar comum. Sexo também, embora figure no regulamento interno que não se pode visitar o quarto dos companheiros, se fala e se pensa muito em sexo num SPA. Isso por que você tira do sujeito a comida e a bebida, fontes primordiais de prazer. Então o que é que sobra e que não engorda? Bingo. Por isso o SPA é um ambiente familiar, mas altamente erotizado, dependendo da roda onde você circular.

(comida de spa: repare na sobremesa de um centímetro e meio)

Eu, como não podia ser diferente, logo me juntei a gang, liderada pelo Marcão, figura que já está em sua quarta operação de estômago e décima visita ao SPA. Marcão tem histórias que já constam nos autos do imaginário da população acima do peso, como as dos dois patos que habitavam a lagoa. Foram capturados, por ele e seu comparsa, que usaram como armadilha um cobertor. Depois foram mortos e depenados na banheira do quarto e junto com os temperos guardados de uma semana (sim, o sal e a pimenta também são controlados por lá), os patos foram levados a sauna no meio da madrugada a fim de serem assados. Como a sauna não deu conta, e já quase amanhecia, os autores do crime pegaram logo um ferro de passar roubado da lavanderia e fizeram os patos a moda da casa: torrados na chapa, sabor eucalipto.

Ficou uma merda, segundo eles, mas a fome era tanta, que tiveram que tentar. Bom, por aí fica a ideia do tipo de gente criativa, engraçada e subversiva que pode circular num SPA. Lugar onde ninguém é alguém, ninguém tem profissão, status, beleza ou feiúra. Tudo isso se dilui numa única meta comum: fazer os ponteiros da balança despencarem.

Os meus cairam quatro quilos em uma semana e eu voltei para casa feliz. Meu único problema é que de lá eu continuava as férias com uma viagem de navio pela Patagônia, acompanhada de trinta e uma pessoas da família para comemorar os sessenta e quatro anos de casamento dos meus avós. Para quem não sabe, navio é um SPA de engorda, onde comidas maravilhosas , vinte e quatro horas por dia são distribuidas aos quatro ventos. E entre ventos, marés, tormentas, geleiras, pinguins e drinks coloridos, eu tive que passar metade das horas do dia na academia do navio para não desperdiçar o dinheiro investido no anteriormente. Quanta esperteza, já que o ideal teria sido organizar o cronograma de forma inversa. Mas bem, saiu desse jeito.

De volta para São Paulo caí na loucura dos projetos, testes, editais e de uma separação.
E não há nada que eu possa escrever sobre o amor ou uma separação que não deixe de fazer sentido antes mesmo da frase ser concluida em minha mente. Por isso há nada a ser dito, a não ser sobre as geleiras.

As geleiras azuis que vi no fim do mundo e que me fazem lembrar que um dia elas não estarão mais lá. Ver uma geleira derretendo é triste, como é triste o fim do amor. Mas a ideia de que elas não acabam, só se liquefazem, me ajuda a entender as coisas que se passam no meu coração. E só posso agradecer a este homem, que além de encarar uma mulher como eu (aqui caberia um parênteses extenso, já que tenho consciência de ser uma mulher bacana de conviver, mas não exatamente simples ou fácil), enfim, agradecer a este homem que me mostrou o amor com tanta generosidade.

No dia em que eu fiz as malas para sair de casa, era uma quarta-feira de cinzas e fazia calor. Por isso só levei as roupas de verão. Nas semanas subsequentes voltei para buscar as peças de frio, embora não tenham qualquer utilidade no momento.

Tenho sentido desejo de comer manga com morango toda manhã, tenho sonhado com mortes noite sim, outras não, e esquecido de escrever as sílabas finais de todas as palavras no bilhetes redigidos a mão. Não, não estou grávida. Estou feliz, melancólica, esquisita. E pronta.


(um pedaço de geleira azul, onde a foto não faz jus a realidade)