domingo, 31 de janeiro de 2010

primeiras e terceiras impressões de Berlim

São quase duas da tarde em Treptow e tem um pimpolho assistindo uma versão dublada, em alemão, de Hobin Hood na minha sala. Na janela, cubos de gelo derretem por causa do sol e eles dizem que isso é quase verão por essas bandas.

Eu não vim para cá por causa de nenhum curso, trabalho ou férias, vim, na verdade, conhecer os três filhos do João, meu namorado. Não, ele não é alemão, mas teve a proeza de fazer três filhos aqui. Do menor para o maior: Cauê, Gil e Clara; sete, doze e quinze. Graças a Deus não são nenhuma dessas pestinhas que a gente vê por aí, pelo contrário, mas são crianças, adolescentes e eu ainda não entendi se vim para cá para que eu os aprove ou o contrário. De qualquer forma, a vida de "madrasta" requer uma doze extra de jogo de cintura e afeto, e eu ainda questiono se estou bem preparada para tal.

No primeiro dia eles me fizeram atravessar um canal congelado quando eu ainda estava vestida em botas cauboi. Foi como sair do aeroporto para um gincana: as botas deslizando, o medo do gelo quebrar em baixo de mim e eu afundar como sardinha água abaixo.

Sinceramente, tenho me sentido um pouco velha, ajudando o João a administrar uma adolescente que conhece todos os lugares da moda por aqui, enquanto que eu, há meses longe da solteirice, não caio numa balada mais arrojada. A idade anda me pegando desprevenida, assim como o frio.

Fora isso, o que mais vejo por aqui são turcos, bom, evidente, já que estou hospedada num bairro turco. Os kebabs são maravilhosos, as palmilhas térmicas funcionam, embora deixem a bota um pouco apertada.

O apartamento onde estou, em Berlim oriental, foi construído em 1901, provavelmente para operários morarem. Tem um pé direito altíssimo, palha entre os tijolos e um cômodo gelado para entulhos atrás do banheiro, único lugar sem calefação da casa. Um prédio bem alemão, daqueles que você imaginava na época do muro, pois então, é aqui. Claro que passou por reformas e adaptações e é atualmente um lugar charmoso, onde tenho tomado longos banhos quentes de banheira, sabendo que lá fora neva.

Venho para Berlim achando que é lugar do momento na Europa, enquanto que eles tem certeza que o Brasil é o país do futuro. Engraçado. Ontem encontrei um casal de amigos que conheci por acaso nas ruas de Moscou, ano passado, e que, por acaso, também estão na cidade. Fomos a um concerto. Eles estão indo para o Brasil amanhã, fazer uma mostra de cinema russo na cinemateca.

Atravessar o mundo, às vezes, é como ir até a esquina.

sábado, 23 de janeiro de 2010

set


O set é uma espécie de Vaticano, tem leis próprias que independem do mundo lá fora, uma hierarquia absolutamente necessária, visível e uma espécie de áurea sagrada em volta dele. Quando você está num set todas as outras coisas da sua vida parecem estar fora de foco, nubladas e distantes. E lá dentro você faz coisas como fumar prestando atenção em não mostrar a marca do cigarro, fica atenta na posição dos seus cotovelos antes de desmanchar uma postura, tem olhos em voltas do pescoço, equilibra microfones no sutiã, dá suas falas nos intervalos de aviões, olha para pedaços de fita crepe como se olhasse o horizonte, se equilibra em saltos apertados, almoça com espartilhos ou outros figurinos bizarros, comuns, enfim, cada set é um set, mas em todos você invariavelmente espera e toma café sem parar. Agora tudo isso é perfumaria, porque o que você de fato foi fazer ali é uma coisa maior. É como se você fizesse toda a trilha para Machu Pichu a pé, passasse dias esperando, andando com os pés calejados e uma mochila carregada nas costas, tudo, tudo para chegar no lugar onde a vista é mais bonita e ter cinco minutos de deslumbramento.

Cinema é mais ou menos isso, você espera, ensaia, maquia, espera, entra na luz, sai da luz, espera, retoca a maquiagem, passa o texto, espera, fica imóvel, concentra, perde a concentração, retoma, espera, olha ao redor, respira e finalmente toda aquela parafernália de luz, gente e som silencia para que você possa dar vida a um personagem que nasceu por acaso na cabeça de alguém, talvez numa tarde chuvosa como esta. E nestes poucos minutos em que a cena é o centro do mundo, alguma coisa acontece, uma coisa que eu não sei direito explicar, mas que justifica todo resto.

Eu estive "presa" num set semana passada e por isso não estive aqui, e estive feliz, porque adoro fazer cinema, gosto de toda essa confusão, essa meticulosidade, tudo em volta, quando tudo começa e finalmente termina.

Terça parto para Berlim e volto na quarta-feira de cinzas, que me pareceu um bom dia para marcar a passagem de volta. Parece que é o inverno mais frio dos últimos trinta anos, parece que venta muito. Mas, bom, como já tenho meu casaco da viagem para a Rússia, me sinto um pouco menos apavorada. Se alguém estiver a passeio pela região me avise, vamos falar português e comer algo estranho e apimentado juntos. Menos chucrute. Então tá, escrevo de lá!

Lá em cima na foto, eu e Cynthia Falabella, parceira adorável de cena, no set. A foto é do Ravel Cabra e Jorge, que também acabou passando por lá.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

estrelas


Antigamente férias era um lugar grande, amplo, uma espécie de galpão onde São Paulo cabia vazia num canto e a fazenda Santa Maria ocupava todos os centímetros restantes. Lá onde eu passei quase todos os janeiros da minha infância, torcendo para que o mês de fevereiro daquele ano tivesse mais de vinte e oito dias, e esperando aparentar quatorze anos para não ser barrada no baile de carnaval. Férias era um tempo que durava desde o último sinal da última sexta-feira de aula, até a arrumação dos cadernos na mochila, véspera do primeiro dia. Era um retrato onde meus avós eram velhinhos, mas nem tanto e minha mãe desfilava pelos cômodos como se tivesse acabado de sair de um filme de Eric Romher. Um lugar onde meu pai dormia e acordava com uma raquete de tênis na mão direita e eu vestia as mesmas roupas até encardir. Cada ano que passava era um dente que trocava ou uma nova cicatriz, como uma enorme na coxa direita, mal costurada por algum enfermeiro do posto de saúde de Cafelândia, lembro até hoje dos pontos apertados com linha preta.

Ontem vi um filme onde o Omar Sharif dizia para um menino: “Felicidade é fazer as coisas lentamente.” É o que tenho feito neste mês de janeiro aqui em São Paulo, trabalhado como se o sol batesse nas costas, bem lentamente. Talvez seja só uma reminiscência dos dias que passei no campo. Talvez na primeira semana de março todo este discurso já tenha ido por água abaixo e eu esteja em algum farol da Brasil com a Rebouças, com gotas de suor na testa, maldizendo o sujeito da saveiro da frente, placa de São José dos Campos, que parou no farol amarelo.

Talvez, mas por enquanto, o céu preto com milhões de pontos brancos, espetáculo noturno diário na fazenda da minha infância, pode estar a quatrocentos e cinqüenta quilômetros de distância, não importa, férias é abrir o livro, bem lentamente, e ter tempo para gostar de um poema tão simples como este:


Há estrelas brancas, verdes, azuis, vermelhas.
Há estrelas-peixes, estrelas-pianos, estrelas-meninas,
Estrelas-voadoras, estrelas-flores, estrelas-sabiás.
Há estrelas que vêem, que ouvem,
Outras surdas e outras cegas.
Há muito mais estrelas que máquinas, burgueses e operários:
Quase que só há estrelas.


do Murilo Mendes