terça-feira, 29 de dezembro de 2009

o novo ano

As pessoas vêm para São Fransisco Xavier descansar e eu para sair das pequenas encrencas nas quais me meto. No primeiro dia fui ao hospital da cidade para saber se a topada que dei no pé era uma contusão, fratura ou luxação. Era contusão. No segundo dia fui novamente à cidade atrás de um borracheiro para o pneu furado. No terceiro e presente dia, tenho de correr atrás do meu celular que, ou bem ficou esquecido na lojinha de verduras ou se perdeu na ribanceira da casa de um amigo, mesmo lugar onde deixei cair uma garrafa de vinho tinto retinto no tapete novo de algodão branco da sala. Problemas de caráter ameno, doméstico, mas que acabam atormentando meus dias de descanso.

Um grande feito da viagem é a vinda de Romit, meu gato. Como já mencionei anteriormente, Romit é um gato peculiar que ganhei de um cigano lá de Santo André, tem asma, uma orelha quebrada e mia como uma coruja quando cisma de. A questão é que eu não agüento mais sair de São Paulo e deixá-lo trancado no apartamento, sozinho, dependendo das visitas do zelador para se comunicar com o mundo. Toda vez que volto são necessários mais ou menos quinze dias para que ele se recupere da minha ausência. É possível que você esteja pensando “Puta gato chato, se livra logo dele.” Sim, ele de fato é um tanto quanto chato, mas é meu, e não é justo pegar um bicho para criar e fazê-lo infeliz, ou qualquer que seja o adjetivo para denominar um animal judiado. Por isso decidi trazer o Romit para São Fransisco Xavier, e contrariando as expectativas dos especialistas de que ele se meteria embaixo da cama e não sairia mais, ou sairia correndo atrás de um passarinho e se perderia na mata, meu gato está feliz como nunca. Passa o dia estendido no terraço, corre atrás de insetos, volta para fazer suas refeições e dormir no tapete. A asma quase desapareceu e ele parou de miar. Já se vão mais de três anos e só agora descubro que o bicho que mora comigo não é um gato de apartamento como eu pensava, e sim um bom selvagem, adepto a vida do campo e suas vicissitudes.

Romit certamente tem se adaptado melhor do que eu ao ambiente rural, mas não perco a esperança de ainda ter um dia inteiro para mim, na rede, sem ter que resolver nada além da escolha do sabor do bolo que vou assar depois do almoço, se vai ter carne ou peixe no jantar ou se tomo banho de ducha ou rio.

Eu iria ao cinema se estivesse em São Paulo, a um mercado turco se estivesse em Istambul, a nenhum lugar se fizesse o frio de Moscou ou a ponte Pênsil se morasse em Piracicaba. Daqui onde me encontro vou ajeitar oferendas para Iemanjá, tentar terminar o livro que comecei seis meses atrás e esperar o novo ano, que além de ser só mais um, vai ser um grande ano para todos nós.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2009

Feliz Natal




Em cima do piano tem um grande presépio que minha avó monta todo ano. Do lado um estojo com pedaçinhos de palha. Quando eu era bem pequena esmigalhava meu pensamento para encontrar alguma boa ação para fazer e poder colocar uma palhinha na cama do menino Jesus. Essa era a condição, fazer uma boa ação e ter direito a colaborar com o colchão do aniversariante. As opções eram poucas: ser obediente, ajudar a lavar a louça no domingo, deixar alguma prima dormir com minha boneca predileta. Essas coisas. Outra dia fui na casa da minha avó e botei uma palhinha no presépio. Não fiz nenhuma boa ação, porque pensando bem, viver dignamente já é uma bela de uma boa ação.

Não foi um ano fácil, nem glorioso, mas foi um ano maduro. Tenho a sensação de ter plantado mais do que colhido, mas os poucos frutos que deram, tiveram um sabor diferente, um gosto espesso, cores saturadas. As coisas não param de acontecer, as boas e as ruins. Essa foi uma descoberta de 2009, coisas boas e ruins podem acontecer ao mesmo tempo e na mesma intensidade. O natal já significou muitas coisas para mim, uma sacola de presentes, comidas que não acabam mais, ensaios para as montagens dos autos-natalinos ao lado dos meus primos Pedro e Nando, porres de vinho tinto, baladas depois da missa do galo, enfim, é uma pilha de coisa que venho sentindo ao longo dos anos.

Hoje o que eu mais gosto é quando passo o olho na minha agenda e começo a ligar para as pessoas que fazem meu coração esquentar quando penso nelas, e como se o mundo fosse acabar amanhã, tenho vontade de falar com todas. Também adoro quando aqueles amigos que eu vejo pouco durante o ano me telefonam saudosos, emocionados. E nunca deixo de olhar para a cara da minha avó Flora quando começam a cantar Noite Feliz, porque é como se ela estivesse cantando parabéns para o próprio filho.

Hoje trombei com um cara no trânsito e vi que ele queria me xingar por causa de alguma barberagem que fiz, vi ele segurando um palavrão na ponta da língua. Deve ter pensado “Porra, hoje é natal e eu não posso xingar essa filha da puta.” Eu vi todo o pensamento acontecer dentro dele, foi engraçado. Eu sei que tudo isso faz parte de um espírito natalino arranjado de última hora, de uma catarse coletiva incentivada pelo consumo, de valores que deveriam perdurar durante o ano todo e não perduram etc e tal. Mas eu gosto mesmo assim, da noite de natal.

Logo mais vou visitar o Marião no hospital, depois minha avó Dorina, que também está internada. E depois meu avô Alex, que não consegue visitar minha avó no Oswaldo Cruz porque tem medo que os médicos resolvam internar ele também. E aí corro para a ceia da minha outra avó, louca para ver minha sobrinha, Micaella, a coisa mais tenra e linda deste mundo. Essas coisas ocupam um lugar gigante na minha memória, cada cara esquisita que ela faz. Os que vêm depois de nós, são sempre uma versão melhorada. Hoje tive certeza disso, vendo minha irmã caçula tocar uma valsa húngara no Piano depois de quatro meses de aula.

Para todos aqueles que têm vindo a este modesto, porém honesto e acolhedor como uma manjedoura, espaço virtual, o meu caloroso Feliz Natal, seja lá o que ele signifique para você.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

decupagem

Acordo.
Penso em sair da cama.
Desisto.
Lembro da aula. O trânsito até o Itaim.
Desisto.
Durmo mais um pouco.
Sonho com uma piscina rasa.
Policiais.
E lobos.
Desta vez levanto.
Tomo café preto com adoçante.
Lembro das reportagens sobre aspartame.
Estico os lençóis.
Sinto cheiro de alecrim.
Ácido láctico.
E o forno a lenha na pizzaria da frente.
Ligo o computador.
Tomo banho.
Sinto fome.
Ligo no banco.
Desisto.
Ligo de novo. Pago o aluguel.
Pergunto sobre o sorteio de vinte mil.
Não ganhei.
Lembro da peça para produzir. Almoço.
Compro um biquíni de bolinhas brancas.
Converso com a atendente sobre estampas.
Lembro do delegado.
Ligo para o delegado.
Respondo telefonemas. Pego trânsito. Tenho muito sono.
Arrasto até a lavanderia.
Volto para casa. Tento dormir. O telefone toca.
Desisto.
Decoro um pedaço do texto.
O sono não passa.
Lavo o rosto.
Penso na peça para produzir. No pêlo do gato que cai no tapete.
Empilho jornais.
Penteio o gato.
Começo a ler as notícias de anteontem.
Largo as notícias.
Olho no espelho.
Separo as contas de luz das de gás. Fico feliz.
Sonho com um lugar morno, macio, fresco nas extremidades.
Uma duna.
A polícia chega para me buscar.
Imagino a vizinha na janela. Eu na viatura.
Chego na delegacia. Olho fotos. Suspeitos.
Sitiada de dúvidas.
Canso.
Trânsito.
Tenho fome de novo.
Sempre tenho fome de novo.
Como. Bebo. Como. Paro.
Coloco os cotovelos na mesa.
As mãos na testa.
Os dedos nos olhos.
Fecho.
Abro os olhos.
Falo alguma coisa.
Sobre a mesma coisa.
Desisto.
Vejo uma estrada no final da rua.
Corro.
Entro no carro.
Tiro os sapatos. Dirijo com as solas no pedal. Beijo ele.
Olho insetos na luz do poste antes do dia clarear.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

HOJE

Ontem fui passar o batom e me dei conta de que há uma semana não me maquiava. A última vez que isso aconteceu foi quando passei uma semana no hospital por conta de uma apendicite. Eu sei que desde o sábado passado, às 5:30 da manhã, o mundo tem rodado de um jeito esquisito para muita gente. Mas agora, com nosso querido amigo sentado, desentubado, mau humorado e com sede, nós podemos tentar voltar a normalidade. Tudo está caminhando bem é importante a ajuda de todos:


Estamos organizando uma Expo-Leilão na sexta feira com verba revertida para custos do tratamento do Mário.
E faremos a última apresentação do ano de "Brutal" a meia noite, com verba também destinada ao tratamento do nosso querido.
Quem quiser ajudar diretamente, segue dados bancários da família para contribuições: Cristiane do Carmo Viana Banco Unibanco Agência: 0935 Conta Poupança: 127721-6. CPF da Cris é 004.957.939-81. A direção de Santa Casa também está necessitando de doadores de sangue que devem se dirigir à própria entidade situada à rua Cesário Motta Jr, 112- Vila Buarque. Por favor, ajudem a divulgar esse ato. Neste momento, qualquer ajuda é preciosa.





APAREÇAM!

domingo, 6 de dezembro de 2009

Mário

Entraram no castelo e atiraram no coração do rei. Mas o rei é forte, e está se recuperando.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Caro tataravô Maximilian,

É uma pena não termos nos conhecido, mas onde quer que você esteja, ou não, já deve ter percebido que minha constituição portuguesa não deixou nenhum espaço para que qualquer resquício da minha ascendência alemã pudesse se manifestar.

Ontem fui a praça da Sé e como sempre parei para admirar a Catedral que o senhor projetou. Confesso que me sinto um tanto importante quando passeio pelas ruas do centro e penso que sou tataraneta do homem que construiu a Catedral da cidade. Tive até vontade de contar para uma das moças que me atendeu no PoupaTempo, mas acho que ela ficaria mais animada se eu dissesse que era prima da prima da irmã, da última vencedora do Big Brother Brasil. O senhor nem imagina o que é um reality show, e é bom que nem imagine mesmo.

Outro dia li uns artigos sobre sua obra arquitetônica, que foi bastante criticada por ser uma mistura de muitos estilos e não ter estilo nenhum; acho que era isso que dizia o crítico. Já eu vovô, adoro ver aquela cúpula verde dos vários pontos de São Paulo e sei de muita gente que gosta também. Te juro, Max, gostaria de colocar o sujeito que inventou o nome PoupaTempo, para passar o dia olhando um painel de senhas como eu passei. Aí sim, eu queria ver se ele não se sentiria ridículo por ter escolhido um nome tão infame e enganoso. Sete horas de fila para renovar uma habilitação, acredita? E eu sem nenhum livro, jornal, ou terço para rezar. Falando em terço, bom, o senhor já deve saber que minha tia avó, sua neta Alba, morreu sábado passado. Ela sempre me mandou cartas do convento onde morava, as quais eu respondia com imensa alegria no coração. Já foi em algum enterro de freira Max? É leve, bonito, para elas, que rezam a vida toda para encontrar Deus, a morte é um momento sublime. Foi o que me pareceu, quando as outras freiras colocaram nela o manto branco de festa. Pois é, as pessoas se vão para algum lugar neutro, pior ou melhor do que aqui, e nós ficamos com a árdua tarefa de pensar sobre nossa finitude.

Sabe que ela morreu num sábado e vovó me disse com grande entusiasmo que Tia Alba tinha usado um escapulário a vida toda e que Nossa Senhora do Carmo prometeu que quem o usasse e morresse em estado de graça, ela viria buscar no primeiro sábado depois da morte. Minha avó, irmã de Tia Alba, estava feliz porque já que ela tinha morrido num sábado, nem precisaria esperar muito. Ela estava triste também, o que me deixou de coração partido. As pessoas que foram no enterro, lá no Carmelo de Cotia, consideravam Tia Alba uma espécie de santa e vinham de todos os lugares passar objetos em seu corpo, tirar fotos e deixar mensagens em seu caixão. Me senti numa pequena procissão em terra santa. Eu mesma, fui até o corpo e coloquei minha mão em cima da dela. Não sei se foi a ocasião, o calor, ou o quê, mas senti uma tontura e formigamento dos pés a cabeça. Uma sensação forte, sem nome. Talvez ela seja mesmo uma santa.

Saudades.

No mais a vida, que vive entrando e saindo dos eixos. Caro Max, talvez não exista nada além do pó, ou talvez o senhor seja um arquiteto de nuvens, nomeado por Deus e tenha os tetos de suas obras celestes pintados por Michelângelo. Ou então, o senhor é uma dessas almas que pairam sobre a órbita terrestre rindo de uns e ajudando outros. Caso seja este o caso, dê uma força aqui para sua tataraneta, porque este final de ano, vou te contar, está bravo. Talvez você me diga o mesmo que vive me dizendo meu pai, toda vez que reclamo da grana. "É filha, eu te falei que você estava escolhendo uma profissão difícil." A questão Maximilian, é que eu não escolhi esta profissão, foi ela que me escolheu. Eu sei, pode parecer uma resposta excessivamente poética e clichê, mas é a pura verdade. Por isso me ajude a encontrar algum trabalho, além dos meus milhares de projetos pessoais ainda não remunerados. Algo para cobrir o final de 2009 e começo de 2010, seja atuando, escrevendo ou pintando rodapés. Isso se o senhor estiver sem muito o que fazer por aí. De qualquer forma é estranho estar no mundo e é bom ter tido a ideia de escrever para o senhor.

Te mando um grande beijo,
da sua quarta geração,
de sangue e aspirações,

Martha

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Vá ao teatro,

mas não me convide. Não é a toa que as pessoas adoram jogar essa frase na nossa cara quando as convidamos para assistirem uma peça. Eu já falei aqui e repito, pessoas de teatro podem ser muito inconvenientes.

Outro dia a Marina, minha irmã caçula, mais conhecida como O Blim, por motivos que não tenho tempo de explicar agora, enfim, O Blim estava atravessando a Avenida Paulista para ir ao cinema.

Era uma tarde qualquer e minha irmã, que descobriu recentemente que a faculdade que ela esta fazendo não é exatamente o que ela quer fazer, estava matando aula. Um pouco sensível, talvez uma TPM. O Blim atravessou correndo o farol do Conjunto Nacional para não ficar presa na ilha e estava prestes a entrar no Bristol quando ouviu pelas costas a frase que tenho pavor de ouvir.

-Gosta de teatro?

O Blim gentilmente respondeu.
-Gosto. Tenho até uma irmã atriz.
-Que ótimo, então não quer colaborar com a nossa campanha do
Vá ao teatro?

O moço tanto fez que convenceu Marina a preencher uma ficha e desembolsar trinta e cinco reais para assinar a tal da revista. Quando o Blim pegou o formulário nas mãos, já sabia que estava se metendo numa roubada, mas não teve coragem de pular fora, porque pelo entusiasmo do sujeito ela devia ser a única do dia a cair naquela conversa. Aquela seria a boa ação do semestre, só que a coisa piorou quando ela descobriu que só tinha um cartão de débito na carteira.

-E agora, acho que vamos ter que deixar para uma próxima...


Mas o moço rapidamente tirou uma solução da cartola.

-Vamos fazer o seguinte, eu e meu amigo tamo com fome, a senhora acompanha a gente no Mac, paga nosso lanche e a gente deposita depois o seu dinheiro com a ficha no banco.
-Ah tá, então vamos.


Naquela altura, realmente, nada poderia reverter o absurdo da situação. O Blim entrou na fila e eles se fartaram com tudo que tinham direito. Dos lanches aos Nuggets, dos sundaes às fritas. A conta deu trinta e oito reais.

-A senhora não se incomoda de pagar três reais a mais, né?
-Imagina, tô aqui mesmo.


Fiquei chocada com a cara de pau deles e ela me disse depois: "Martha, eu tava achando aquilo tão surreal, já tinha perdido meu cinema, que resolvi que era aquilo mesmo que tava acontecendo e eu não ia contrariar."

Depois ela me mostrou os benefícios do negócio que tinha feito; ingressos para "As Encalhadas", peças espíritas e outras comédias ordinárias.

-Acho que vou tentar "As Encalhadas", da Bibi Ferreira, o que você acha?
-Sei lá Blim, acho que é uma questão de honra, agora você vai ao teatro.
-Tem também um desconto para comer no Piolim, conhece esse lugar.
-Ah legal, conheço, de quanto é o desconto, cinquenta porcento?
-Não, dez.
-É Marina, realmente, você foi uma presa fácil.


Lembrei que dez anos atrás, sem querer e tentando ajudar uma moça a conseguir bolsa na faculdade, fiz uma assinatura de um ano da revista Gula. É a velha história, "me passa o número do seu cartão, só para a gente te dar um brinde" e quando você vê, está dividindo o prejuízo em doze parcelas. Toda vez que aquela revista chegava eu ficava puta por ter sido enganada e principalmente por estar de regime e não poder usufruir das receitas.

Só espero que O Blim não fique com o mesmo sentimento em relação ao teatro. Prometo que te dou convite para a próxima, tá?

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Rehab

É impressionante como acompanhar uma novela pode fazer com que você compreenda e participe de conversas para as quais nunca foi chamada antes.

Faz três anos que moro sozinha, dois deles sem televisão. Eu tinha uma antena que comprei na loja de construção aqui do bairro, cheguei a colocar bombril na ponta dela, mas a imagem nunca deixou de ser dupla. Então eu nunca mais tinha visto tv e vivia bem assim. Até o belo dia que liguei para resolver um problema na internet e a moça me convenceu de que eu estaria fazendo um excelente negócio se adquirisse o Combo Triplo.

No começo eles te dão todos os canais para você pegar gosto, depois vão tirando, aos poucos, um telecine aqui, uma gnt ali, e quando você vê, está apenas com o Animal Planet e a Universal pegando, já que o meu Combo é dos mais vagabundos. Isso quer dizer que posso escolher entre o Law and Order ou os programas de redecoração de casas de casais em crise.

Eu acabei descobrindo o poder analgésico, desinflamatório e aparentemente adstringente das novelas. Sim, eu deito no sofá, fecho as cortinas, ligo a TV e me torno, durante algumas horas uma espécie de ameba, esponja marítima, uma cadeia de aminoácidos primitivos. O mundo vai se distanciando, o corpo amolecendo e aquela voz padrão dos atores e locutores da Rede Globo vai agindo como uma espécie de mantra no meu cérebro.

No começo tudo bem, eu pensei, porque se existe no mundo alguma coisa que faça desacelerar o meu pensamento por alguns instantes e não cause danos irreversíveis nos meus neurônios, por que não fazer uso dela? Acontece que com essa desculpa, "Preciso descansar a cabeça", eu me viciei. Quando vi, estava assistindo o fim da novela das seis, o meio da das sete e a das oito inteirinha, inclusive comerciais. Claro, não é toda vez que estou em casa dando sopa nesse horário, porque afinal, apesar do meu novo vício, continuo sendo uma moça muito trabalhadora.

Mas eu não tenho certeza se quero realmente entender e fazer parte do diálogo da maioria. É que quando você acompanha uma novela, percebe que aqueles nomes que as pessoas viviam falando no elevador, na aula de ginástica, no balcão da padaria, nomes como Helena, Marcos, Luciana, Tereza, não se referiam a parentes ou amigos das pessoas que os pronunciavam, você descobre, que aqueles nomes todos sempre foram nomes dos personagens das novelas que você nunca assistiu. Só que agora você assiste, e pior, você agora não só entende o que as pessoas estão falando, como também opina, defende um, xinga outro e descobre que na verdade, o público não quer ser surpreendido, já que as revistas especializadas contam quase a novela toda antes dela começar. O público quer virar uma ameba depois do trabalho e ter assunto para o dia seguinte, basicamente isso. Não pega bem , eu sei, tornar pública a condição na qual me encontro, é horrível mesmo, fico olhando para os meus livros e pedindo que eles me resgatem dessa areia movediça que é a tele-dramaturgia. Espero ansiosa que eles me lancem um pedaço de cabide ou corda na qual eu possa me segurar, e assim que isso acontecer, juro, caio fora dessa lama e volto a não ter assunto com as ascensoristas.



(Eu e meus livros, agora empoeirados.)

sábado, 14 de novembro de 2009

a vista daqui, que a gente tem de lá

Perto do fim do ano parece que uma ressaca emenda na outra. Ressaca do álcool, do apagão, do calor, das notícias. Por isso decidi viajar e fugir das dezenas de festas que insistem em acontecer sempre que eu resolvo sair da cidade. Eu vou mesmo assim, acumular uns créditos para as futuras ressacas, (que ando em débito comigo mesma) e ver se a distância, São Paulo parece menos espinhosa.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

É uma locução, mas parece um poema e

fazia tempo que eu não via um tão bonito. Deus, tudo bem, se eu não puder fazer todas coisas que faço tão bem quanto o jogador, que eu pelo menos faça com a emoção deste locutor.

relato radiofônico de Victor Hugo Morales, copa do México de 86

Lá vai passar para Diego
aí a tem Maradona
dois o marcam
pisa na bola Maradona
arranca pela direita o gênio do futebol mundial
e deixa os adversários para trás
e vai passar para Burruchaga
sempre Maradona
gênio gênio gênio
ta ta ta ta
gooool goool
quero chorar
Deus santo viva o futebol
golaaaço
diegoool
Maradona é para chorar perdoem-me
Maradona, em uma corrida memorável
na jogada de todos os tempos
barrilete cósmico
de qual planeta vem?
para deixar no caminho tanto inglês
para que o país seja um punho apertado
gritando por Argentina
Argentina 2 Inglaterra 0
diegol diegol
Diego Armando Maradona
obrigada Deus pelo futebol, por Maradona
por estas lágrimas
por este Argentina 2 Inglaterra 0

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

se você me ama, por que não se concentra?


foto de Carlos Bozelli

Não, não é um recado. É que hoje fui ver "Pixo" do João Wainer e Roberto P. Oliveira e lembrei desse muro que pixei com o poema da Ana Cristina Cesar. Ideia da Fernanda, que gritava em plenos pulmões "Corta! porque junto na interrogação, erro crasso da língua portuguesa, Martha!". E lá ia eu com a lata de tinta branca, repintar o muro pela terceira vez. Eu sabia disso, sabia o poema de cor, das regras gramaticais, mas na hora saía errado. O sol rebatendo no branco do muro, o nervoso, a válvula emperrada do spray, o take único. Nunca diga para um ator que o take é único, melhor falar que é ensaio que ele vai acertar. Nesse dia descobri que é muito difícil pixar um muro, pixar com categoria. Hoje, assistindo o filme, descobri outras coisas. Vale a pena ver, é um puta filme triste, bonito, vivo, você certamente nunca mais vai olhar uma pixação com os mesmos olhos. Anarquia era só uma palavra a léguas de distância e eu lembrei porque só consegui pixar direito aquele poema na hora em que a Fernanda disse "Abre o quadro Edinho, a gente tá prendendo ela..."

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

meu aniversário

Dizem que é a mão que denuncia nossa idade, a cara da mulher pode estar linda, o corpo enxuto, mas se você olhar para as mãos, vai saber a verdade. Na véspera de completar vinte e nove anos, resolvi olhar para as minhas.
É quase imperceptível, nenhuma mancha, vinco, nada parecido. É mais como se ela estivesse um pouco mais altiva, menos falastrona, o tempo. Eu sempre achei bobagem quando minhas amigas diziam, quando você chegar perto dos trinta, vai entender. Não estou entendendo nada muito bem, na verdade, acho que melhorei com a idade. No colégio eu era só uma menina extrovertida, que gostava de poesia, era meio amiga de todo mundo, meio sem turma, meio cdf, pecando na matemática, um pouco nerd, talvez. Quando meus pais se separaram eu caí no mundo. Foi uma queda desajeitada, comecei a fazer teatro profissional quando a maioria dos meus colegas nem sabia direito qual vestibular prestar, faltava nos eventos escolares para ensaiar e caía na balada. Era colégio de manhã, Célia-Helena fim de tarde-noite e a noite madrugada adentro. Nem sei como aguentei, minhas notas caíram, eu comprei um dicionário mundial de citações para dar conta das redações, adquiri olheiras, parei com os esportes, lia sem parar e me apaixonava pelos homens errados. Lembro que o Marcelo Paiva foi dar uma palestra na escola e eu me apaixonei por ele. Fiz um pedido de namoro, mas ele não aceitou, preferiu a Marina, minha amiga. Agora somos bons amigos e rimos do episódio. Como eu disse, acho que o tempo é meu aliado, com dez anos olhava aquelas meninas populares jogando handball como profissionais e sabia que era por pouco tempo que eu ia continuar fugindo da bola, sabia que ia ser por outro caminho. Naquela época eu tinha a impressão de que tinham me colocado na quadra errada, com as pessoas erradas. Depois encontrei o teatro, e achei que era um bom lugar para fixar residência no mundo, mas aos poucos, aconteceu de tudo ir ficando apertado e eu passei a ir atrás de outras vistas. Então acabei sentindo que estava em muitos cantos e talvez em canto algum. Hoje decidi que não existem lugares, mas onde quer que eu esteja, tento ser a melhor companhia para mim mesma e para minhas mãos.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

fim de noite



Esta foto é um tiro no pé, eu sei, mas quando a festa é boa, o fim de noite corre o risco de ser na sarjeta. Descalça.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

vai ser legal!

É uma festa para arrecadar fundos para a peça, e de quebra, é meu aniversário. A peça é do Caco Galhardo, a direção da Fernanda D Umbra e eu produzo e atuo. A música vai ser boa.

Até já.


segunda-feira, 19 de outubro de 2009

DER EDUCATOR

Depois da novela japonesa, foi a coisa mais trash que já fiz diante das câmeras.




ps: trash é bom.

terça-feira, 13 de outubro de 2009

só uma lista

-vinho barato dá dor de cabeça
-champanhe barata dá dor de cabeça
-misturar marca de cerveja dá dor de cabeça
-produtos light engordam
-chocolate suíço tem muita manteiga
-ninguém escapa das oralidades
-nem dos clichês
-gente atrasada nunca muda
-o tamanho da insegurança é proporcional ao da beleza
-meus pais nunca vão se entender
-não existe ressaca a toa
-o barato sai caro
-a Rebouças está sempre engarrafada
-no jantar de estreia de uma peça só se fala da peça
-eles sempre cobram a mais na conta de telefone
-eles podem cortar sua luz sem te avisar
-eu não consigo mentir nem para o cara do seguro
-eu não devo falar ao telefone dirigindo
-poesia ruim constrange
-poesia boa aplaca
-o poema feito em sua homenagem não se avalia
-fumar faz mal a saúde
-torpedos de amor somem do aparelho junto com as mensagens da operadora
-eu sempre pego a ponte errada na Marginal
-sei que estou prestes a cometer um erro segundos antes de cometê-lo
-romantismo não tem cura
-evitar consultar o saldo bancário só piora a situação
-uma faxina bem feita não resiste ao pó da cidade
-pensar na próxima cena, durante a cena, é a pior vala onde se pode cair
-pensar na cena que não foi boa, durante a cena, é na verdade a pior
-não importa o quanto isso incomode alguns, vou continuar sublinhando meus livros a caneta
-orquídeas só devem ser regadas a cada sete dias
-arruda todos
-uma coleção de caixinhas, é uma coleção de vazios
-rezar antes de sair da cama
-cortar as unhas do gato antes que elas cortem as almofadas
-não escrever no blog alcoolizada
-não mandar e-mails de madrugada
-fechar as gavetas antes de dormir
-descongelar a geladeira uma vez ao mês
-guardar comprovantes de residência de dois anos atrás
-não deixar cds originais no carro
-anotar o número do pis em algum lugar
-ligar para minhas avós
-olhar a janela de casa de fora da casa
-ir para cama no primeiro momento de sono
-não pedir conselhos sobre o mesmo assunto para mais de duas pessoas
-não responder ao taxista se é aqui que você mora
-sempre ter uma folha de cheque na carteira
-o rodízio do carro é na segunda
-eu devia ter feito aquele back-up

sexta-feira, 2 de outubro de 2009

para onde?

É interessante ver a cidade mudando, na sua fuça, como um bicho de estimação crescendo entre aqueles que você ama. Essa mãe infiel, que muda de cara toda vez que você se distrai. Primeiro foi o Vegas, acho, depois o Inferno , outras casas noturnas, lugares descolados para se comer e quando a gente viu, a antiga Vila Madalena, na época em que era legal ir à Vila Madalena, mudou-se para a rua Augusta, lado centro. A mesma rua que, nos tempos da minha mãe, era um lugar chiquérrimo para se desfilar os cabelos alisados com a toca noturna. A rua mais democrática do lado Jardins, a rua que não tenho dúvidas em pegar se tenho de voltar a pé na madrugada, a rua para onde meus amigos solteiros estão se mudando. Até onde sei, as putas saíram da zona para a boca e da boca, (a boca ainda existe?) para alguns lugares, inclusive a rua Augusta. E agora todos convivem harmoniosamente: quem quer balada pesada, as moças de vida fácil, os artistas que tocam no Studio SP, os salões de beleza onde você vê todo tipo de gente fazendo a unha, as academias vinte e quatro horas, os puteiros, saunas, livrarias, meus amigos e eu no bar Bahia, os atores habitués do Piolim, os playboys, teatros, sinucas ou apenas andarilhos de passagem à Praça Roosevelt. Enfim, de tudo um pouco, um pouco de tudo. É uma delícia passear por lá, é como tomar uma brisa em Copacabana. Alguns puteiros desapareceram, viraram bares de moderninhos e o trânsito continua ruim. Eu fiquei pensando, até quando? Posso estar enganada, muitos devem manjar muito mais desse assunto do que eu, e só me arrisco a dizer (porque estou vendo a coisa de perto) que este parece ser um período de transição, ( bom, claro, todo período é uma transição), enfim, parece que a rua Augusta vai voltar a ser um endereço exclusivamente frequentado por uma classe social abastada. Será? ou será que é justamente por causa dessa "diversidade", dessa fauna excêntrica misturada que ela vem chamando a atenção daquelas pessoas que até poucos anos tinham medo de ir ao centro depois que o sol se pusesse. E se isso acontecer, quem vive e trabalha por lá, vai para onde? A longo prazo, é possível a convivência desses universos tão diferentes? Quando eu era pequena e passava as férias na fazenda, ouvi uma vez algum tio dizer para o outro que não era bom arrendar a fazenda para plantação de cana. Eu perguntei por que e ele me explicou que a cana é um tipo de plantação que suga tudo da terra até não sobrar mais nada, até a terra falir, e que depois, são necessários muitos anos para ela voltar a ser produtiva. É um pouco essa imagem que eu tenho da gente no mundo, a gente vai tomando conta de um lugar, uma área, vai sugando tudo que tem de bom alí até esgotar. Daí a gente procura um lugar novo. Mas acho que sempre foi assim, não? Desde os tempos de nossos ancestrais nômades. A diferença é que no campo, depois da colheita vem a queimada, que deixa tudo com cara de nada e na cidade vem o que a gente chama de decadência, depois a xêpa.

quinta-feira, 1 de outubro de 2009


( Eu, Maria Manoella, Caca Manica, Erika Puga, Lu Caruso e os homens, Laerte Mello e Batata em foto de Renato parada)

Tem muita gente por aí com quem eu ainda quero trabalhar e tem gente com quem eu quero sempre continuar trabalhando. Uma dessas pessoas é o Mário, o Bortolotto. O Mário não é um diretor de processo, como ele mesmo costuma dizer. Por isso tem muita gente que, equivocadamente, acha que ele não é muito de dirigir ator. É verdade que se você propuser um ensaio-laboratório, exercícios de improvisação com o texto que ele escreveu cirurgicamente, adaptou ou simplesmente está encenando, ou ainda, se você quiser propor um jogo de expressão corporal, qualquer atividade do gênero ou dar um grito de guerra antes do espetáculo, é capaz que ele te mande sair andando, gentilmente, claro. Mas tem uma coisa, entre muitas, que ele faz com maestria: te ajuda a construir a linha de pensamento do seu personagem como ninguém. E isso é raro. Não estou dizendo que todas essas outras possibilidades de trabalho que citei acima, sejam inúteis ou menores, mas diretor é como namorado, você não acha tudo em um parceiro só. Você escolhe as qualidades das quais não pode abrir mão, e no resto, você faz sua parte e tenta se garantir. Hoje a Manu me disse na coxia "Essa peça precisava de mais uma semana...", e eu respondi, "Você pode ensaiar durante um ano, que na véspera de uma estreia, uma peça sempre precisa de mais uma semana.". Não temos uma semana, aliás, temos pouco mais que 24 horas, já que amanhã, meia-noite, nos Parlapatões, estreiamos "Brutal". Ficamos por lá todas as sextas até final de novembro, neste horário, que vai me obrigar a pedir cafés duplos, fortes e entrar em cena na hora em que o resto do mundo já está na terceira latinha de cerveja. E eu vou estar sóbria e feliz. E este post todo é para dizer que venham!

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

pelas ruas de Londrina


A gente estava procurando uma sorveteria, café, algo assim. Mas não havia nada na avenida que saía do hotel. Passamos por lojas de pneus, estações de tratamento de água, gráficas, escritórios e quando achávamos que se tratava de um passeio perdido, eu vi isso no chão. Voltei, parei, olhei e chamei a turma. Não tivemos dúvida, nos jogamos no asfalto na mesma hora. Quem cliquou a foto foi o Edinho e a companheira ao lado todos sabem quem é: Fernanda D'umbra. Agora resta saber quem foi. Foi você Chacal?

domingo, 20 de setembro de 2009

mind the gap

Eu sei do que estou falando, eu já passei por isso, várias vezes. Já fiz todas as dietas do mundo, já passei três dias tomando a sopa do Vigilantes do Peso, bati o recorde de colesterol na dieta do Dr. Atkins, tentei enganar meu apetite fingindo que era de batata o purê de couve-flor da dieta de South Beach, decorei a tabela de pontos, conheci todas as marcas de shakes e não foram poucos os finais de semana que passei me alimentando de cevada. Acredite, também já saltitei frente à tv com os vídeos de ginástica da Cindy Crawford em meados dos anos 90. Tudo isso funciona, mas há muito não passo por isso. A coisa chegou num ponto honesto em minha vida, o peso, medidas, espelho. Sei que outro dia fui fazer uma prova de roupa para um longa e a calça não entrou. A menina nada gentil do figurino ficou olhando para minha cara como quem diz "Você deveria ter passado suas medidas certas" e eu fiquei encarando ela como quem diz "Querida, não sei do que você está falando, sempre vesti esse número..." Não sei se por causa do assalto ou por conta de um homem que vem repetidamente me dizendo o quanto sou linda, o fato é que pareço ter engordado. E isso é um saco. Fatalmente comecei um regime e começar um regime significa pensar mais em comida do que se pensa normalmente, significa folhear com mau-humor os guias quando se passa pela parte de gastronomia, analisar descaradamente o prato de pessoas magras e voltar do mercado com sacolas de tofu, cogumelo e iogurtes cheios de aspartame. A vida é mesmo um castelinho de cartas, você ajeita de um lado e quando vê, o outro está prestes a desmoronar. Outro dia vi um documentário sobre o Chico Buarque, e em determinado momento o Tom Jobim dizia algo como "'é difícil administrar a vida, eu sou meu próprio síndico, tenho um monte de coisas para cuidar...". Claro que ele disse isso de forma mais poética, mas eu não tenho capacidade agora de repetir, só sei que por aqui, além de síndica, tenho exercido outras funções como as de zeladora, porteira, faxineira, contadora, agente e adestradora de animais, como a maioria, na verdade. Não é uma queixa, só constatação. Quando eu era criança, meus pais me diziam que eu deveria aproveitar enquanto podia, que a vida adulta seria bem mais difícil. Nunca concordei com eles, sempre achei a infância e adolescência bem mais cruéis que a fase adulta. E continuo achando. Mas às vezes me pego com saudade dos tempos em que eu não sabia o valor do condomínio ou das calorias de uma bolacha Bono. Espero que a correria dos próximos dias me ajude na empreitada: esta semana vou para Londrina fazer Ana C. e dia dois de outubro estreiamos Brutal. E vou ajeitando meu castelinho, andando de um lado para o outro com meus textos, tamancos e saindo do regime uma vez por dia. E só para reparar o exagero textual, nunca fiz a dieta do Dr. Atkins. Isso é coisa para meninos.


(e só para ninguém achar que sou uma moça muito acima do peso, aí vai uma foto bem bonita)

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

valeu!

Você provavelmente pensaria a mesma coisa que eu se chegasse em casa as quatro da manhã e visse duas viaturas te esperando. Ai meu Deus o que foi que eu fiz? Tinham achado meu carro, então eu e minhas duas pernas ligamos para o seguro e fomos correndo para o local, de mini-saia mesmo. Tomamos um chá de espera da perícia durante três horas e meia e quando finalmente abriram o carro já era de manhã. Não deixaram nada dona, só isso aqui. O moço em cima do guincho tinha dois livros na mão, "Pornopopéia" do Reinaldão e o último do Chico Buarque. Arrancaram as calotas, recolheram parcimoniosamente cada cacareco que lá havia e até o lixo levaram. Mas deixaram os livros. Imagino a cena: pegaram os volumes na mão, passaram os olhos na capa e resolveram se poupar do peso extra.

Oito da manhã, um mau-humor do cão, frio nas canelas e a cara do policiais de não tô nem aí contigo, mas eu não pude deixar de formular uma frase infame com aqueles dois títulos sobreviventes: fim da epopeia, nem adianta chorar pelo leite derramado.

terça-feira, 8 de setembro de 2009

Hoje é seu dia de sorte, colocaram o dedo por engano na sua testa e te designaram uma grande missão. Não, não foi por engano, é com você mesmo a parada. Então, põe na sua cabeça uma coisa, você não vai lembrar de cor das coisas que te roubaram, você vai ter que começar de novo e isso nem é tão ruim vai, não há males que vem para o bem? Veja bem, talvez seja esse o caso. Agora você vai lá, põe o jeans, desce as escadas e quando chegar na padaria pede para o moço do balcão um café com leite desnatado. Se não tiver desnatado pergunta se tem em pó e se não tiver em pó, você toma puro mesmo, só com a espuma do leite. Escuta, aproveita que você tá sem fome e fica sem comer por uns dias, vai ser bom para você, jejum espiritual. Se te perguntarem alguma coisa que você não souber responder, não se aflija a toa, não há pergunta que não possa ser respondida se bem escutada. Eles vão gostar de você assim, diz não sei, ou é uma nova fase, sabe? Eles vão ficar curiosos, vão querer saber, você vai até achar que é um grande trunfo tudo isso aqui. E de fato é. Conta para eles que quer ter um filho, sei lá, que foi você que quebrou o vaso chinês com arroz tibetano, o arroz que o Dalai Lama abençoou. Mas isso também não importa mais, tem tanta coisa quebrada por aqui. Lembra do delegado te dizendo, calma moça, calma, depois você vai reescrever tudo, e muito melhor e aí vai ser um best-seller, pode crer, um best-seller. Você vai até agradecer o sujeito de cabelo carapinha...

terça-feira, 1 de setembro de 2009

nada menos do que isso

coisas que se lê em época de ensaio:

"Laurence Olivier, em seus melhores dias, é o que todo mundo sempre quis dizer com a expressão "uma grande ator". Ele tem todas as cartas na mão e, na representação teatral, as figuras do baralho consistem de (a) relaxamento físico completo,(b) magnetismo físico poderoso, (c) olhos dominadores que sejam visíveis no fundo da galeria, (d) uma voz dominante que seja audível sem esforço no fundo da galeria, (e) timming soberbo, que inclua a capacidade de dar musicalidade aos versos, (f), chutzpah -a intraduzível palavra hebraica que significa uma combinação de nervos frios e atrevimento ultrajante-, e (g) a capacidade de comunicar um sentimento de perigo. São todos atributos vitais, embora a ordem de importância possa variar (o próprio Olivier considera que seus olhos são seu maior trunfo), mas o último é, sem dúvida, o mais raro. Observando-se Olivier, sente-se que, a qualquer momento, ele é capaz de fazer alguma coisa totalmente imprevisível, algo explosivo,possivelmente apocalíptico, enervante em sua nudez emocional: a pata do leão pode agredir. Não há nada de brando nesse homem."

Kenneth Tynam em "A vida como performance"

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Romit- o insaciável


(a foto é do Luiz Valcazaras e da Simone Mina)

A história é a seguinte: um belo dia fui tirar as cartas com um cigano, lá em Santo André, e para espremer e resumir bem este enredo, voltei com um gato preto a tiracolo. Romit, com t mudo no final. Sempre achei que os gatos fossem uns bichos orgulhosos, independentes e sarcásticos, e por isso mesmo pensei que ia ser legal ter um. Acontece que o Romit revelou ser um gato com alma de cão, e por que não dizer, de homem, mais carente do que um, depois de um pé na bunda. No começo achei bonitinho, ele ali, me fitando com cara de apaixonado, me seguindo pela casa, querendo entrar no chuveiro... e comecei a ceder; ele dormindo na cama de noite, em cima da minha barriga no sofá, roubando meu atum em lata, roendo meus cachecóis. Só que os bichos são como os vícios, não podem mandar na gente.

Diante da conclusão de que o Romit tem mandando mais em mim do que eu nele, resolvi, há alguns dias, que ele não dormiria mais na cama. Cansei de acordar com ele embaixo da minha lombar ou com suas patas traseiras na cara. Sabe, eu adoraria que ele fosse um daqueles gatos dos Saltimbancos, arruaceiros, sacanas e que voltasse para casa por puro interesse mesmo, só para conseguir um bom filé. A Dr. Kátia, veterinária de Romit, disse que ele já foi um garanhão, um gato de briga. Eu não sei o que aconteceu entre essa fase e a vida com o cigano em Santo André, só sei que agora, ele é um gato de apartamento, asmático, amoroso e com a orelha quebrada. E não ficou nada feliz em ser expulso do quarto na hora de dormir. Na primeira noite miou durante umas seis horas, na segunda quatro e na terceira, regrediu de leve e passou a miar cinco horas seguidas.

Agora ele não mia mais, faz, na verdade, um barulho horroroso, que é uma mistura de uivo, gorjeio e miado, e para quem ouve de fora, parece que estou tirando o couro dele. Não foram poucas as vezes que eu pensei em abrir a porta e abortar a missão. Mas toda noite eu digo, ele não vai me vencer e todo dia eu repito, só por hoje não vou abrir a porta. De fato e apesar do barulho, tenho dormido melhor e feito carinho nele nas outras horas livres do dia. Mas sinceramente não adianta, Romit é um abismo de afagos e carinhos, não importa o quanto eu me dedique a ele, ele sempre quer mais. Eu disse para a Edith, faxineira:

“É o gato mais carente do mundo.”
No que ela me respondeu:
“Será que é por que ele tá no final da vida?”
Final da vida? Meu Deus, eu nem sei a idade do meu gato.
“É Edith, sei lá, só sei que eles têm sete vidas...”
“Acha mesmo?”
“Acho.”


Tantas vidas para querer amor e ele vem me pedir tudo de uma vez, esse gato. Então, já que eu não dou conta sozinha, é o seguinte: para meus amigos, fãs de Romit, que quiserem se revezar em carinhos, a casa está aberta. Agradeço.

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

JÁ?

Já teve vontade de picotar tudo que tem seu nome escrito?
já perseguiu um gato na cidade?
Já construiu um muro entre seu coração e sua cabeça
e passou os meses seguintes tendo que escalar a própria vida?
Você tem ideia do que é manter em pé seu corpo,
manter suas roupas limpas,
as contas pagas
ideias claras
e o peso sempre igual?
Já teve sua cola exposta na sala da diretora,
sua redação rabiscada no mural
e o coração ensopado de xixi?
Será que você já passou horas olhando para o telefone,
tentando reconstruir um diálogo,
para ver onde foi que errou?
já te disseram que você é a cara do seu pai
e essa foi a coisa mais esquisita que poderiam
ter dito sobre você?
Já teve medo de ser esquecido
mais rápido do que gostaria?
Sentiu a vertigem de um beijo bem dado,
teve raiva quando te mandaram ficar calmo
ou ficou calmo quando o mundo caía na sua cabeça?
Já teve certeza de que era absurdo cruzar o oceano por cima
e andar em tubos por baixo?
Já se apaixonou por uma voz no telefone
ou um rosto passando do outro lado da calçada?
Já teve a sensação de que sabia mais que todo mundo na sala
ou bem menos do que aqueles que pagaram para te ouvir?
Já deu socos imaginários em idiotas
e pensou a semana toda em alguém que,
não importa o quanto você lamente,
não te quer?
Você certamente já sonhou com os dentes moles
e a vez que voltou para escola
e era dia de prova.
Talvez você não sonhe que está nua no palco
sem saber as falas,
mas já sentiu inveja
de quem diz que sonha que está voando...
Eu já te perguntei se você colecionava
coisas vivas
ou chicletes velhos?
E se você já teve medo de ficar vesgo com o vento?
cego
surdo
paralítico
e nunca mais poder subir um lance de escadas.
Já prometeu nunca mais beber, ligar, transar sem camisinha?
usou escondido a escova de dentes alheia
e empurrou os cacos para baixo do tapete?
você já olhou para a cara de uma pessoa
e teve a sensação de que ela ia morrer em breve?
Já quis ajudar alguém sem que esse alguém soubesse?
Já negou um pedido de socorro
ou gritou até ensurdecer os deuses
mas só os cães te ouviram?
Já mudou de ideia quando a porta do avião estava aberta
e você já tinha pago pelo salto?
Eu já te falei também que penso em ter filhos,
plantar árvores
mas tenho preguiça.
Já te fizeram esperar por anos?
Você já foi numa tourada?
No Grand Canyon?
Já disse que amava alguém por piedade,
jurou pelo sangue que corria em suas veias
e passou noites em claro olhando as próprias mãos?
Já ouviu séculos uma música
sem reparar na letra?
Já reparou que algumas letras não combinam com a melodia
assim como alguns corpos não combinam com as caras?
Já percebeu que você combina comigo
e eu com você?
entende a incoerência
a importância desse fato?
Já pensou sobre o que vai fazer a respeito?
Já chegou a conclusão de que talvez seja melhor não pensar?
já te disseram que você está envelhecendo?
Já leu aquele verso que diz
que a vida é curta
para ser pequena?
Já pensou em qual filme a gente vai ver hoje a noite?
Já tirou o lixo da cozinha,
brigou com a mulher da telefônica
ouviu alguma frase boa por aí,
disse alguma que vale a pena?
Você já se olhou no espelho de madrugada
e teve vontade de cortar os cabelos
com a tesoura de unha?
Posso cortar seu cabelo?
posso dormir essa noite aí?
Posso ser a primeira pessoa para quem você vai olhar de manhã
o resto da vida?
já reparou como é estúpido
chamar a vida toda que temos pela frente
de resto?
Já quis ser um pop star,
um faraó
um cavalo selvagem?
Tem vontade de segurar na mão de alguém
e não soltar mais?
Já te disse que a coisa mais legal que existe
é isso aí
sobre dar as mãos?

terça-feira, 18 de agosto de 2009

BRUTAL

Hoje começam os ensaios de "Brutal", texto e direção do Marião, comigo, Manu, Lu Caruso, Erika Puga, Cacá, Laerte Mello e Batata. Eu sempre achei esse texto meio pesado demais, apesar de bem escrito. E sempre me perguntei do por que montá-lo, apesar da ficha técnica já ser motivo de sobra. Mas na semana passada, quando fizemos uma leitura com o elenco todo, as peças se encaixaram, o sentido do texto ganhou uma amplitude aos meus olhos e eu entendi porque vou fazer esta peça, além do fato de querer me divertir um pouco mais, obviamente. Essas coisas acontecem no teatro, num dia você acorda e pensa estar fazendo uma coisa boa de verdade. No outro você tem vontade de enfiar sua cara na terra e só tirar depois da estréia. Uma hora tudo se ajeita, claro. No final da tarde vou para o ensaio, e por hora, as coisas estão todas no lugar.

acima a foto do Pereio ( a "voz" do espetáculo) ainda concentrado após a última leitura. E abaixo dois vídeos: conforme a noite foi progredindo, a situação foi piorando...

terça-feira, 11 de agosto de 2009

DIÁRIO MOSCOU


Conforme combinado o diário da viagem para a Rússia, publicado na Piauí de março e posteriormente (numa versão editada) na Piauí Flip. Segue o original!
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diário

Esse russo está destruindo meu ego



A atriz paulista Martha Nowill, de 28 anos, passou um mês em Moscou estudando o método Stanislasvski de interpretação na Academia Russa de Arte Teatral. Acompanhada da colega Maria Manoella, Martha estudou sobretudo Tio Vânia, de Tchekhov, com o decano da faculdade, Valentin Vassílievitch Teplyakov. Foram 120 horas de aulas, temperaturas de deixar um pingüim histérico e ensinamentos do tipo “os atores brasileiros interpretam personagens de Tchekhov, que são cães de raça, como se fossem vira-latas .”



São Paulo, Natal de 2008, 23 graus
O aeroporto de Guarulhos é tão cheio no natal quanto em qualquer outro dia do ano. Fora o fato de as moças da KLM usarem chapéus com chifres de rena, o resto é igual na companhia. Filas e mais filas carregando um trambolho nas mãos: o casaco que demorei quinze dias para escolher. Qual levar para a Rússia? As pessoas me aterrorizam, riem da minha cara quando digo que vou passar o inverno em Moscou, me emprestam blusas térmicas, luvas de esqui, coisas que só de olhar me dão calor. Sem contar meu pai, que ficou repetindo que o inverno russo derrotou Napoleão. E Hitler! Apavorada, fui atrás do casaco de peles da minha avó. Fiz o resto da mala com receio de ser atacada por algum ativista maluco, mas segura de que venceria o frio.

Amsterdam, Holanda 26 de dezembro, 0 grau
Assim que desembarquei, o casaco da minha avó rasgou. Passei o dia com uma corrente de ar entrando pelas costas. Fomos a um coral cossaco e a Manu não sossegou enquanto a gente não sentou num coffee-shop.

Vilnius, Lituânia, 27/12, -3 graus
Chegamos a Vilnius, uma cidade de bonecas. Tenho usado um casaco reserva que só cobre até a cintura, morro de frio na bunda. Andei atrás de um novo e não encontrei. Tudo muito caro por aqui.

Vilnius, 28/12, -5 graus
Tenho febre. Vai ser difícil sair para comprar um casaco. É que ontem à noite saí com os cabelos molhados do hotel, tomei seis litros de chope local e dei pulos de alegria na neve. Os lituanos têm o cabelo cor de rato e falam a língua indo-européia mais arcaica que existe, mais velha até que o sânscrito. É como se fosse um fóssil vivo de línguas desaparecidas. São muito curiosos e acharam estranho duas brasileiras indo a Moscou estudar Stanislavski.

Entre Vilnius e Riga, 29/12, -4 graus
É estranho ver os mendigos usando casacos de pele. Essa noite ardi em febre, acordei melhor e fui atrás do casaco. Gastei um quinto da alimentação da viagem com ele. Paciência. São seis da tarde e estamos no ônibus para Riga. Não se vê nada pela janela.

Riga, Estônia, 30/12, -3 graus
Cada dia que passa, compramos mais um acessório para o frio, além da alimentação gordurosa. Não agüento mais comer porco no café, almoço e jantar. O Gustavo, nosso amigo e agente de viagens especialista em Rússia, me veio com a história de que não podemos perder o prato nacional da Estônia: lingüiças de sangue. Só sei de uma coisa, se eu continuar comendo esses bichos nacionais diariamente, em duas semanas quem vai virar um bicho nacional sou eu: um urso gordo e pardo.

entre Riga e Tallin, réveillon, -5 graus
Último dia do ano. Sonho com Moscou, com o curso e nossas personagens: Sônia e Helena, uma mais triste e desperdiçada que a outra. A princípio Manu faz a bela Helena, e eu, Sônia, o patinho feio de Tchekhov. Pensamos em trocar os papéis: como tenho feito mais sucesso com o público masculino das redondezas, a mudança pareceu bem coerente. Mas vamos deixar a decisão ao Valentin, o decano da faculdade de interpretação da Academia Russa de Arte Teatral, nosso futuro professor e carrasco.

Tallin, 1º de janeiro de 2009, -7 graus
Descobri a melhor técnica do mundo para gelar um champanhe. Saia com uma garrafa na mão pelas ruas da Estônia e em minutos ela estará mais gelada que a neve do chão. Passamos a virada nos muros de um castelo medieval, as pessoas todas na rua, como se estivessem a 23 graus. O primeiro dia do ano amanheceu limpo, com sol, como se espera de um primeiro dia. Passeamos até começar o vento.

Helsinki, Finlândia, 3/01 -10 graus
Amanhã pegamos o Tolstoi, trem para Moscou. Faz vinte graus negativos lá. Passamos a cena hoje, foi horrível. Há sempre o dia em que você percebe o grande canastra que pode vir a ser. Ontem foi assim, uma pior que a outra, a voz em falsete, as interrogações exageradas e a informação perdida. “Quem eu penso que estou enganando?” é o que me vem na cabeça nessas horas. O pior é que a gente sempre engana alguém.

Fronteira russo-finlandesa, 4 /01, -10 graus
Estamos no trem dividindo cabine com um casal de russos simpáticos. Os russos fazem verdadeiros piqueniques nas cabines, com chá, pães e vodka. Um deles riu do meu casaco e disse que se a temperatura passar de menos dez, eu não consigo sair do metrô. Amanhã de manhã o Valentin vem nos buscar na estação. Só vejo neve da janela e, não fosse o peso das malas, pareceria mesmo um filme.

Moscou 5/01, -18 graus
Do que se consegue ver além do branco, Moscou é majestosa. O lugar onde a gente vai estudar, o Gitis, é o sonho de qualquer estudante de teatro. Imagine uma escola russa, com fotos de grandes mestres, num prédio neoclássico do século XVIII, banheiros soviéticos e a sala do decano cheia de picles e vodka. A nossa turma tem onze brasileiros e uma portuguesa, Soraia. O curso é em russo, com tradução para o português. Fomos as únicas a escolher Tio Vânia para encenar, a maioria parece ter paixão pela Gaivota. Melhor, assim o russo não vai ter meios de comparar.

Moscou 6/01, -15 graus
Eu já sabia: memória emotiva não funciona. Ninguém usa esse recurso aqui. Já no Brasil vivem querendo nos empurrar essa “técnica” goela abaixo. É um pouco óbvio, que, se você pensar na morte da sua tia para chorar numa cena de Macbeth, vai estar se distanciando da situação proposta. Nem o Stanislavski acreditava nisso. Acontece que ele experimentava um monte de coisas e seus discípulos saíam por aí escrevendo livros e teorias, que, passado algum tempo, ele mesmo percebia que não funcionavam. Mas aí várias dessas idéias equivocadas tinham virado cartilha.

Moscou 7/01, -10 graus
“Não existe mulher feia, existe pouca vodka”. Foi como o Valentin começou a aula hoje. Ele deu um banho de água fria na nossa escolha dramatúrgica. Disse que Tio Vânia é uma peça para homens, e que como Sônia e Helena são personagens secundárias, não pode fazer grande coisa a respeito. Ficou mais preocupado ainda quando a gente disse que vai montar a peça no Brasil. Mas ele é muito debochado e se em parte tem razão, o resto é deboche. Estou exausta, essa coisa de suar em lugares quentes e passar frio nas ruas cansa o corpo.

Moscou 8/01, -12 graus
Foi um dia difícil. Tivemos a infeliz idéia de sermos as primeiras a se apresentar. A primeira coisa que o Valentin disse para a tradutora foi: pergunta para elas por que elas sentem tanta pena de si mesmas. Depois começou a dirigir meu monólogo inicial. Niet! (não!), ele gritava antes mesmo que eu conseguisse proferir a segunda sílaba. Após algumas tentativas, perguntou se eu realmente estava entendendo o que ele dizia, como se dissesse “essa atriz tem algum problema?” No fim da tarde, tive uma mão congelada que demorou horas para voltar. Uma atriz de Fortaleza, Ecila, me disse que nessas situações de frio extremo, o único jeito de descongelar uma parte do corpo é colocando-a entre as axilas.
Chegamos ao teatro às sete da noite para assistir Três Irmãs, em russo, claro. A montagem era boa, mas tinha quatro horas de duração e a única palavra que entendi foi pausa. Cheguei moída no alojamento, sonhando com o presunto cru que tinha comprado na véspera. Achei que ele estava esquisito, muito gorduroso, até que a portuguesa avisou: “Martha, isso que estás a comer é banha”. Vou dormir antes que algo pior aconteça.

Moscou, 10/01, -15 graus
Hoje foi nossa folga e eu só saí do alojamento á noite. Fomos assistir Dom Quixote, um musical que beira o cafona, mas emociona bastante. O teatro está para o russo como o futebol para o brasileiro. Se houver três montagens da Gaivota na mesma cidade, as três estarão lotadas durante os anos que ficar em cartaz. A hora do agradecimento é emocionante: o público bate palmas ritmadas, as pessoas entregam flores e bombons para seus atores prediletos e acontece uma comunhão mágica entre os artistas e a platéia. O Dom Quixote de hoje tem 93 anos e é um grande ator, um Paulo Autran daqui. O metrô já tinha fechado quando voltamos. Tivemos que pegar um táxi, o que significa chamar qualquer carro na rua e combinar um preço (ninguém pega táxi aqui, é muito caro). Quando o Gustavo fez sinal para um carro parar, a gente ficou na calçada esperando. Em doze segundos, havia oito carros em volta da gente.

Moscou, 11/01, -10
Se algum russo te oferecer vodka, não recuse. Vire depois do brinde e tome alguma coisa doce que te servirem, tipo uma compota de frutas fervida com açúcar ou uma coca-cola. A volta no metrô e as placas indecifráveis são por sua conta.

Moscou 14/01, -2 graus
Fez um calorão nos últimos dias. O gelo começou a derreter e as pessoas escorregam a torto e a direito. Moscou é pura lama. Nosso ritmo de trabalho é duro: a gente acorda oito da manhã, faz o café, sai para a primeira aula, almoça a ração do refeitório do Gitis e faz a segunda aula até cinco da tarde. Então vamos para o teatro assistir alguma peça que geralmente dura em torno de quatro horas. Costumo dormir os dez minutos iniciais para agüentar o tranco. A gente volta para o alojamento e janta, bebe, lava roupa na pia, põe para secar na calefação, estuda a cena e, quando vê, está quase na hora de acordar. Todos estão exaustos, com os egos feridos por conta dos gritos do Valentin. Hoje apresentei meu monólogo final. Acho que ele gostou, quer dizer, não ficou repetindo alto “Pachimu?” (por quê?), como costuma fazer, nem mencionou algo como “tudo o que você diz é da boca para fora”. Se bem que dizer que gostou já é exagero.

Moscou 15/01, -6 graus
Esse russo filho da puta está destruindo meu ego dia após dia. Diz que tem ouvido absoluto para a verdade, que quando eu estiver sendo verdadeira, ele vai saber. Se eu me expresso, ele diz para eu não demonstrar a emoção. Se não demonstro, ele diz que não há nada dentro de mim. Se sento, diz que meu corpo está sem vida, se ando, ele pergunta se existe algum motivo para eu andar. Ele fala coisas como “os atores brasileiros interpretam personagens de Tchekhov, que são cães de raça, como se fossem vira-latas”. Eu disse para a Manu: que merda a gente veio fazer aqui, além de passar frio? Ela respondeu: a gente veio desgastar nossa relação e acabar com nossos egos.
Voltou a nevar.

Moscou 17/01, -5
Eu e Manu brigamos. Feio. Mas a parte boa é que ontem tive uma conversa emocionante com o Valentin. Falávamos sobre Stanislavski e desatei a chorar. Existem dois tipos de interpretação: uma, puramente técnica, que imita a verdade, e outra, também técnica, que vivencia a verdade. Quando saí da escola de teatro, eu acreditava na verdade. Quando digo “verdade”, não tem nada a ver com aquele tipo de tortura emocional que os preparadores de elenco, como a Fátima Toledo, fazem com os atores no cinema nacional. É uma verdade outra, mais pura e profunda. Depois de alguns anos trabalhando, comecei a perceber que a interpretação puramente técnica era mais rápida e também funcionava. Nunca parei de atuar com meu coração, mas passei a desconfiar da idéia de uma atuação inteiramente verdadeira e cheguei até a desdenhar esse tipo de idealismo. Seguem-se os dias, as estréias apressadas, os ensaios de luz e som, diretores impacientes, a agenda apertada, a falta de grana, nada disso ajuda. Dez anos depois eu venho para a Rússia e me deparo com um homem que nada contra a maré, que acredita no artista, que cutuca seu ego e instiga seu coração até o limite, que te mostra o caminho de como fazer mais e melhor. E fico confusa.

Moscou 18/01, -6 graus
O Lênin embalsamado não é agradável de ver. Depois fomos às compras. Eu e Manu quase morremos de hipotermia na feira de artesanato. A gente ficou tão louca com aquele monte de xales e matrioskas que já era noite e ainda corríamos as últimas barracas da feira, escorregando no gelo, carregadas de sacolas e geladas, bem geladas. Nossos casacos e botas têm dado conta do frio, só que as botas dão um chulé terrível. E olha que nunca tive chulé. Mas tudo bem, porque como o grupo inteiro está com esse problema, ninguém sente o chulé do outro.

Moscou 19/01, -4 graus
Hoje à noite tenho um encontro marcado com o Sasha, que é um russo lindo que conheci na semana passada. Sasha é abreviação de Alexandre, nome do meu pai por acaso. Eu estava comendo aquela ração no refeitório, quando ele apareceu. O moço mais lindo da escola. Conversamos num inglês ruim de doer e meia hora depois ele foi até minha sala de aula com uma maçã. Quase morri do coração, foi o gesto mais puro e lindo que já vi. Os estudantes daqui são muito duros, e os russos, se não podem pagar uma conta, por menor que seja, nem saem com você. Mas eles sempre têm um gesto desse tipo: hoje ele desceu as escadas do Gitis com um doce para mim. Combinamos de nos ver à noite.

Moscou 20/01, -3 graus
Deu tudo errado. O Sasha veio me ver e foi barrado na portaria do alojamento. Briguei com o velhinho que não deixou ele entrar, mas não teve jeito. Aí saí com o pijama embaixo do casaco, as pantufas dentro da bota e dei a volta no quarteirão até o alojamento dos russos. Manu e Soraia foram comigo. Só que a velhinha que cuida da porta de lá não me deixou entrar de jeito nenhum. Manu sofria com um dicionário, tentando se comunicar com ela, eu sofria de aflição e Soraia ria de nós duas. Quando ele apareceu na porta, foi uma novela mexicana: dois jovens apaixonados na neve sem ter para onde ir, sem ter uma língua em comum e desesperados. Então a gente resolveu dar nosso primeiro beijo ali mesmo, um beijo desalojado. Foi quando notei que, no meio desse nervosismo todo, tinha fumado uns quatro cigarros nos últimos quinze minutos. O problema é que o moço odeia cigarro e quando o beijo acabou ele disse: “Você faz mesmo questão de fumar?”. Agora são nove horas e ele ficou de vir à meia-noite. Já armei um esquema com o porteiro do dia, mas não sei se ele vem, depois do meu beijo sabor Ruskie Style, o cigarro mais gostoso daqui.
Ah, sim: finalmente o Valentin elogiou nossa cena! Ele disse “parabéns” (pausa). “Melhorou” (pausa). “Dá para ver que vocês finalmente entenderam” (pausa). E aí começou a desfiar as novas críticas, claro.

Moscou 21/01, -4 graus
Esperei, esperei e ele não apareceu. A gente se esbarrou na escola e ele falou um negócio que não entendi. Fim da tarde a gente se trombou de novo, e dessa vez fui eu quem falou algo incompreensível. Muito frustrante isso. Se a falta de comunicação impera nas relações humanas, imagine entre um russo e uma brasileira. Se bobear, meu russo está melhor do que o inglês dele. Já sei um monte de palavras e frases, entendo vagamente o que as pessoas dizem, saio sozinha, não compro mais bacon no lugar de presunto e ando com um dicionário na bolsa. Se alguém fala alto comigo (o que é bem comum) falo mais alto ainda. E se me importunam na rua eu começo a falar português e a pessoa sai correndo, assustada.
Hoje tivemos aula com a Zinaida, uma atriz que tem os maiores olhos do mundo. Ela entrou como um canhão na sala e eu, de sobressalto, levantei em reverência e disse: “Sdratsia” (olá). Fui a única. Ela nos passou um sermão, disse que quando um professor chega todos devem se levantar e ficou impressionada com nossa falta de postura. O Valentin nunca tinha reclamado, está acostumado à informalidade dos brasileiros. A aula da mulher foi incrível, deu uma visão muito esclarecedora sobre nossa cena. Finalmente consigo enxergar a personagem, de trás para frente, do avesso, cada canto dela. No final, ela disse a coisa mais clara e sábia que eu já ouvi sobre Tchekhov: “Em Tchekhov é assim: você respira na coxia, antes de entrar em cena, e só solta o ar na hora do agradecimento”

Moscou 22/01, -6 graus
Quando a cena acabou, me senti exausta de tanta concentração. O Valentin nos deu parabéns. Fiquei feliz. Porque ontem mesmo eu falava que conseguia finalmente enxergar a personagem e foi o que ele disse hoje: “Olho para você e consigo ver a Sônia”. Eu e Manu nos olhávamos de verdade e nos entendíamos. Foi bonito.
Depois da aula encontrei o Sasha no refeitório. Ele tirou um laptop da mochila com um tradutor automático do russo para o inglês, disse que estava triste por não ter me encontrado, que se sentia apaixonado, blábláblá, que não conseguia vir aqui e que a porta do alojamento dele fecha a uma e só abre às seis da manhã. A certa altura da conversa, falei que a gente devia ficar junto, e ele entendeu que eu o estava chamando para morar comigo. Foi uma confusão, mesmo com o tal tradutor. Aí ele me deu uma pilha de chocolates e foi para o ensaio. Ele vem esta noite.

Moscou 23/01, -1 grau
O Sasha me deu mais um cano e a cidade derreteu novamente. Eu nem ando mais pela rua: apenas deslizo e a cada minuto que passa peço a Deus para não levar um tombo. Hoje eu andava sozinha pela Praça Vermelha e ouvi uns brasileiros conversando. Parecia uma alucinação. Segui-os durante um tempo e a certa altura gritei “Ei, vocês são brasileiros?” Faz três anos que eles moram aqui, estudam piano. Senti uma vontade enorme de ter vinte e poucos anos e vir para a Rússia passar quatro anos estudando teatro no Gitis. Mas não tenho mais esse tempo, nem disposição. Tenho pena de ir embora. Não sinto saudades de São Paulo, nem das ruas do meu bairro, nem da praça Roosevelt. Não sinto saudades de nada que eu pensei que sentiria. Só tenho saudades da Inês, minha irmã mais velha que está grávida de oito meses. Tenho saudades da barriga dela e mais nada.

Moscou 24/01, -4 graus
A gente tinha comprado uma vodka para o Mário Bortolotto, mas matamos a garrafa toda ontem a noite. O grupo foi para São Petersburgo e ficamos sozinhas no alojamento. A vodka russa não dá ressaca, não mesmo. Acho que é por isso que os russos vivem bêbados, tropeçando no metrô. Sinto o cheiro de vodka amanhecida quando estou dentro de um vagão apertado, e isso me enjoa. Hoje é sábado e fomos ver os impressionistas na galeria do Museu Puchkin. À noite assistimos Tio Vânia num teatrinho perto da escola. O ponto de encontro era às seis da tarde no gabinete do Valentin: ele colocou Cartola, serviu um conhaque e ficamos ali em silêncio até hora da peça. Gosto do Valentin, ele é grandão e como todo homem grande, é bom. Põe terno para dar as aulas, exige seu melhor, te olha com interesse quando percebe que algo em você se movimenta. E ao mesmo tempo é bravo, debochado, impaciente, fica vermelho quando grita. É um homem muito bonito, um mestre sem as chatices de mestre. Eu e Manu o abraçamos diariamente e dizemos que ele é nosso Astrov, personagem objeto de desejo de Sônia e Helena. Ele ri, gosta da gente.

Moscou 25/01, -2 graus
Tem um ninho de corvos na minha janela. Olho para a neve e penso no boneco que prometi fazer. Hoje tinha uma babushka de neve gigante no jardim e eu tirei um monte de fotos com ela, na esperança de que alguém acredite que fui eu quem fez. Acabo de receber uma rosa vermelha aqui no alojamento. Do Sasha.

Moscou, 26/01, 0 grau

Hoje o Valentin veio dar aula bêbado. Chegou na sala com a cara vermelha, assistiu nossa cena (que não regrediu nem evoluiu) e ficou enchendo lingüiça o resto do tempo, falando sobre a Rússia e a decadência na educação. Na saída encontrei o Sasha e agradeci a flor. Ele disse que vem me ver esta noite. Não boto muita fé.

Moscou, 27/01, - 1 grau
Isso eu vou escrever com gosto: o Sasha veio me ver na noite passada. Foi coisa da providência divina: a certa altura da noite, o velhinho que fica na porta resolveu aparecer na cozinha. O Gustavo ofereceu vodka e eu dei a ele um prato de lentilhas. O velhinho, veterano de guerra, ficou lá, contando suas histórias. Nesse meio tempo meu namorado russo chegou e não tinha ninguém para barrá-lo.
Fora isso, a terça-feira transcorreu tranquilamente. Trabalhamos alguns versos de Homero na aula de voz e, à tarde, passamos todas as cenas da turma para o Valentin assistir. Estou feliz, ele falou que tinha muita alegria em assistir nossa cena de Tio Vânia e elogiou meu monólogo final. Disse que o bom teatro é aquele que emociona sem que seja preciso compreender uma só palavra, e que eu tinha conseguido isso hoje. As meninas que escolheram fazer A Gaivota estão sofrendo bastante. A personagem se mantém indecifrada para elas, para nós, para o Valentin e acho que para toda e qualquer atriz que já tenha tentado fazer a Nina no teatro. Fiquei com vontade de tentar.

Moscou, 28/01, -3 graus
Tenho pena de partir. Gosto de sentir o ar frio na cara quando saio do metrô, gosto da convivência com o grupo, das escadas do Gitis e até do trigo sarraceno que eles servem no refeitório eu comecei a gostar. A vida passa rápido, isso fica ainda mais nítido e desesperador quando se viaja. Hoje apresentamos nossa cena e parece que chegou a hora de darmos um passo adiante, de aprofundarmos as personagens e de conseguir repetir hoje, o que já conquistamos ontem, como se fosse pela primeira vez. Mas é esse o grande desafio do teatro não é? Repetir todos os dias a mesma cena, talvez durante anos e fazer com que ela esteja viva como se acabasse de nascer. Tudo isso sem ligar o piloto automático, que tal?

Moscou, 29/01, -3 graus
Tivemos as aulas finais de corpo e voz e eu aprendi como usar meus tons agudos sem machucar a garganta, só direcionando a vibração. Outro insight foi na aula do Valentin: não existe como no vocabulário do ator, só existe o quê, o quê fazer? Um cirurgião nunca vai pensar em como fazer, e sim em o quê fazer. Como é aparência, o quê é pensamento. E por aí vai. Vi o Sasha na hora do almoço. Formamos um perfeito casal à la Romeu e Julieta, apaixonados e impedidos pelas “circunstâncias dadas”, termo essencial da gramática stanislavskiana. Tenho vontade de colocar ele na mala e despachá-lo para o Brasil. Vivo encontrando tanta gente fechada, tantos homens esquisitos, viciados em jogos afetivos, torturas sentimentais, que quando vejo um moço como o Sasha, que tem o coração do tamanho da Sibéria, a pureza e disponibilidade que procuro, me dá vontade de chorar. Ele fica desesperado, coitado, cada vez que meu olho dá sinais de vermelhidão.

Moscou, 30/01, -6 graus
O Valentin chorou enquanto assistia meu monólogo, usou o adjetivo “magnífico” para falar sobre o que eu tinha feito, disse que Sônia, minha personagem, tinha tudo. Também adorou a cena que eu e Manu fizemos juntas. Missão cumprida: chegamos aqui achando que íamos arrasar, tomamos uma, outra, esmigalhamos o orgulho que nos restava, e ressurgimos das cinzas – ou melhor, da neve – maiores do que antes. Consegui unir a técnica que adquiri nos últimos anos com a emoção que vinha deixando de lado. E após um mês de tortura, o mestre preparou um banquete de despedida: uma mesa com frutas, peixes, massas, salames e muita vodka. Fim de noite, antes de ir embora, eu olho mais uma vez para o Valentin. Ele me diz para tomar cuidado e não escorregar no caminho. Eu sei, eu sei, respondo e quase sufoco o russo com meu abraço.

Moscou, 31/01, -15 graus
Moscou acabou com a trégua que tinha nos dado e voltou aos velhos e bons menos quinze. Levantei heroicamente da cama e fui até o Museu Maiakovski. Não gostei, não gosto muito dessa coisa da escova de dente de alguém que se matou há sei lá quantos anos exposta para os turistas. Também me dá aflição o coitado do Lênin embalsamado, parece que nunca vai conseguir descansar. “Gente é para brilhar, este é meu slogan e o do sol”, disse Maiakovski. Voltei para o alojamento mais deprimida do que saí. Eu e Sasha vamos tentar nos ver esta noite, queria fazer alguma coisa incrível, aproveitar a cidade o quanto posso ou comer camarão numa sauna russa. Mas não tenho forças e o frio não ajuda. Olho para a bagunça sem fim do quarto e imagino se vou conseguir colocar tudo dentro da mala.

Moscou, 1º de fevereiro, -25 graus
Visitamos a casa do Stanislavski e, ao contrário da do Maiakovski, tinha um astral muito bom. No nosso último dia aqui, nos perdemos, quase congelamos. Para não perder o costume, levei um puta cano do Sasha, que está na véspera dos exames de formatura. A maioria das pessoas do grupo já foi embora e o alojamento está mais silencioso que nunca. Cozinhei e coloquei meu pijama, encardido da vida de estudante russa e da calefação. Amanhã é dia de Iemanjá e estarei sobrevoando o oceano. Ano que vem eu volto, se Deus quiser.

Céu, entre a Europa e América, 2 de fevereiro
Moscou não acredita em lágrimas, é um clássico do cinema georgiano, e eu não acredito que o Sasha não veio se despedir de mim. Será que não gosta de despedidas, ou não gosta de mim mesmo? A conexão para Paris atrasou e quase perdemos o vôo para o Brasil. Todos perguntam sobre o olho roxo da Manu, ela faz um sinal de beber, diz a palavra “vodka” e depois faz outro sinal de cair.

São Paulo, 3/02, 20 graus
É surreal sair de uma temperatura de menos vinte e ir para mais vinte. Desejo ardentemente um copo de suco de laranja natural. Para meu desespero, só tem um pacote de salame na geladeira. Sinto falta do frio queimando de leve a bochecha.
Terminar mexe com as entranhas. Lembro que, quando era criança, tinha a sensação de que ia morrer de tristeza quando as férias acabavam, quando uma festa acabava ou uma sessão de cinema chegava ao fim. Minha mãe sempre dizia que outras festas viriam, que as próximas férias não iam demorar e que no domingo seguinte também teria cinema. Não adiantava, alguma coisa sempre ficava para trás, como fica agora. Mesmo quando a vida é boa, há um tanto de crueldade nisso. Em Moscou, tinha me prometido ficar uns dias em casa descansando, mas acho que logo mais vou colocar minhas sandálias e sair por aí.

domingo, 9 de agosto de 2009

para aqueles que gostam de poesia

Não é sempre que um plágio vira briga judicial. Muitas vezes é homenagem, inspiração. Vimos muito disso no curso do Antonio Cícero. Um bom exemplo é esta obra-prima escrita por Camões. Vale a leitura, vale o tempo que você dispuser, vale cada minuto que você vai gastar para lê-lo e vale reler também. Depois vê embaixo a poesia de Petrarca, que foi o ponto de partida de Camões. Curioso não? Como uma coisa genial, pode ficar mais genial ainda...


Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Numa hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar uma hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.


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Paz não encontro e nem me quer a guerra;
E temo e espero e ardo e sou gelado
E vôo sobre o céu e jazo à terra;
E nada aperto, e o mundo todo abraço.

Quem me prende não larga nem encerra,
Nem por seu me retém nem abre o laço;
E nem me mata Amor nem me liberta,
Nem me quer vivo nem quer meu trespasso.

Vejo sem olhos, sem ter língua grito;
E anseio por morrer, e peço ajuda;
E me odeio a mim mesmo e amo a sós.

De dor me alimento, chorando rio;
Igualmente desprezo a morte e a luta:
E neste estado estou, mulher, por vós.


(tradução de Antonio Cícero)

quinta-feira, 6 de agosto de 2009

ainda hoje

Chego em casa depois do curso com Antonio Cícero e escrevo mais dois poemas. Não posso colocá-los aqui, pois guardo para o livro. Minha cabeça gira em torno de rimas, liras e versos heróicos. Bonito o termo, não? Antonio disse que se assusta com os alunos que dizem gostar de fazer, mas não de ler poesia. Também eu sempre me irritei, mesmo que mansamente, com os atores que afirmam adorar fazer teatro, mas detestar freqüentá-lo. Senão nós, quem mais irá nos assistir? É tarde e tenho preguiça de sair para comprar mais uma garrafa. Boa noite.

segunda-feira, 3 de agosto de 2009

ANA C


Estou feliz. Dia 23 de setembro farei mais uma vez Ana Cristina Cesar. Este é um espetáculo em parceria com Fernanda D'umbra e Edson Kumasaka sobre a poeta carioca. É difícil escrever uma sinopse sobre ele, porque a sinopse soaria uma pouco chata, coisa que a performance está longe de ser. Entre outras coisas lindas que Ana C escreveu:

FLORES DO MAIS

devagar escreva
uma primeira letra
escreva
nas imediações construídas
pelos furacões;
devagar meça
a primeira pássara
bisonha que
riscar
o pano de boca
aberto
sobre os vendavais;
devagar imponha
o pulso
que melhor
souber sangrar
sobre a faca
das marés;
devagar imprima
o primeiro
olhar
sobre o galope molhado
dos animais; devagar
peça mais
e mais e
mais


Vai ser no Londrix, ao som de The Police, que era a banda predileta da loira.

sábado, 1 de agosto de 2009

anatomia

No começo era inocente guardar o segredo sob a rótula do joelho direito, se o resto do medo tinha se coagulado em sangue pisado, bem embaixo das unhas. Ela não tinha mais vinte e poucos anos. O rastro que a angústia deixou nas vezes que varreu o corpo todo, da sola ao couro cabeludo, tinha sido impresso, de leve, sobretudo na panturrilha. E era estranho não poder, nem por um minuto, separar-se de si mesma. E se ela quisesse dar uma volta no quarteirão sozinha? E se ela quisesse, por motivos que não vem ao caso contar, tomar banho sozinha? Mas não, ela tinha que ir junto com ela. E como se fosse um jogo, tentou lembrar da última vez que sentiu ódio. Não lembrou porque faz muito tempo. Raiva sim, mas em nenhum lugar específico do corpo. Vinha em forma de pequenas fagulhas nervosas, que se espalhavam como catapora na pele. Logo depois desapareciam sem aviso, do mesmo jeito que chegavam. Na palma da mão esquerda uma confissão, que era a irmã mais nova do arrependimento, que embora tímido, ousava deitar-se como um rei sobre o peito do seu pé. E assim ela vivia. De vez em quando olhava para a barriga e sentia que uma náusea tentava se instalar nas paredes do estômago. Era seu instinto de defesa que fazia com que ela corresse até a janela em busca de ar, e assim que o fazia, logo via alguém na rua que julgava estar mal agasalhado.“Esse vai passar frio mais tarde...”ela pensava. Desse jeito esquecia da náusea, e a náusea se esquecia dela. Constante mesmo era a ansiedade, que apesar de decrescente nos últimos anos, ainda arrebitava o seu nariz. O nariz por sua vez, tentava se livrar da bandida, empurrando-a hostilmente para o pescoço. O pescoço, embora um gentleman, não conseguia carregá-la por mais de meia hora. Sem saída, a ansiedade escorria pelos ossos, até se alojar, espremida entre a primeira e a terceira, na segunda vértebra. De lá para o mundo: diluída em panos quentes e algo bom que o dia traria. Sem falta. A inveja era nula, ou quase, remanescente da época em que fez tudo errado. O pior mesmo era a culpa, que de tão subjetiva, sempre se apossava de algum lugar novo. Era uma inconveniente, a pior das parasitas, que vinha quando ela achava que finalmente tinha liquidado o assunto, vinha para mostrar que o corpo era dela também. Mas não era; o corpo era o corpo. E ela poderia sim, ser o cabide das próprias oscilações, não fosse o endocárdio, que ali na altura do peito, entre o miocárdio e o pericárdio, seguisse inabalado. O peso que carrega, é mais leve do que; O que pode ser mais leve que uma pluma? Então, é isso! O peso da parte mais interna do músculo era mais leve, do que pode ser mais leve, que a pluma.

Essa era a graça de tudo.

quarta-feira, 29 de julho de 2009

RÉPLICA

diálogo entre eu e meu amigo Marcelo, lá do ABC,sobre o texto do post abaixo, transcrito da forma mais fiel que me foi possível...

Ele - Legal seu texto sobre sua geração..
Eu- É? Pô, valeu!
Ele- Embora não seja muito condizente com a minha realidade.
Eu- Como assim?
Ele- Essas coisas de amor são diferentes em cada classe social.
Eu- Será?
Ele- Martha quando você tá no inferno, você tem outras preocupações e qualquer arremedo de amor vale.
Eu- Muita terapia por aqui?
Ele- É.
Eu- Para mim no amor todo mundo é igual.
Ele- Mas não é. Quando você tá fudido as coisas são outras...
Eu- É, mas na horizontal, isso conta tanto?
Ele- Na horizontal, se você vier pra quebrada, você se realiza.

Eu vou continuar discordando dele, e ele de mim. E é assim mesmo.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

MINHA GERAÇÃO

Minha geração sofre por amor. Minha geração senta na mesa do bar e fala mal do amor. Minha geração diz que o outro tem medo de amar, reclama porque o outro não se entrega e foge do vínculo amoroso. Minha geração não conhece o que é intimidade, e se tem a oportunidade de conhecer, sai correndo na primeira deixa dizendo solenemente: “Mas também, não era para ser...”. Minha geração é estudada, conectada, informada, não dá ponto sem nó, nem se enrosca a toa. Ela se orgulha das vitórias individuais e da luta contra a osmose amorosa. Minha geração é tão independente e emancipada, que descarta qualquer possibilidade de atrasar um minuto de sua vida por conta do outro. Mas a minha geração é o que tenho e o lugar que tento honesta e arduamente fazer parte, porque afinal, eu também pertenço à minha geração e assim não poderia deixar de ser. Sim, eu pertenço à minha geração, embora cometa gafes dantescas que pessoas da minha geração não costumam cometer. Mas a minha geração me dá um desconto, porque também a exceção, faz o charme da regra. Faz parte da minha geração falar mal de si mesma e incitar um saudosismo falso, inútil, mas muito útil como consolo. Nós que dissecamos a nós mesmos e nossas próprias formas de nos relacionarmos. Nós que como eu, falamos mal de nossa geração, por pura inveja dos que em nossa geração, sobrevivem harmoniosamente. Nossa geração sofre por amor, vinte e nove vezes ao ano, mas nossa geração não costuma amar, porque os terrenos onde semeamos, estão praticamente estéreis. É, minha geração sofre mais por amor, do que ama de fato. Ela insiste nessa ideia inventada por alguma outra geração muito anterior a ela ou talvez por Deus, vai saber. E eu tenho orgulho de que ela seja assim, porque minha geração sofre por algo que mal conhece e ainda assim, insiste em tentar conhecer.



http://snoreandguzzle.com/?p=53
( e este é um link, que vai dar num lugar, onde pode-se ouvir "India Song", música que dá nome ao filme de Marguerite Duras que assisti semana passada. Um filme belo, chato e entorpecente. Em dado momento o personagem diz: "Quando ouço esta música, tenho vontade de amar". A mim também deu vontade,veja aí se te inspira ...)

quinta-feira, 23 de julho de 2009

quinta-feira

Eu já sei. Segunda -feira vem a faxineira e põe a casa no lugar. Passa cândida no banheiro, guarda as roupas nas gavetas erradas e quebra alguma coisa. Sempre. Eu então passo a semana toda tentando manter a ordem no recinto, espanando a poeira, escondendo a louça suja das visitas e correndo atrás do gato. Por volta da quinta-feira eu desisto e a casa volta a ser um bordel.

quarta-feira, 22 de julho de 2009

UM POST ÀS CEGAS

Dorina de Gouvêa Nowill

Foi engraçado porque era um jantar às escuras e quando a moça colocou a venda nos meus olhos e sugeriu que eu comesse tudo com a mão, juro que quase me arrependi de ter pago para estar lá. Mas ali no escuro, algumas coisas ficaram claras para mim. Os sentidos ficam mais aguçados, sim, quando não se tem acesso a visão. A comida tem mais gosto quando pega com as mãos, e a gente tem uma necessidade muito menor de falar quando não enxerga. A gente fala mais do que precisa, essa é a verdade. Eu, pelo menos, tive vontade de ficar quieta atrás da minha venda, e quando falei, era tão estranho conversar privada de um dos meus sentidos, que minha fala acabou despida de maiores acabamentos. Explico, quem estava do meu lado era minha mãe, e aquela venda nos olhos me deixou de tal forma “bêbada” e desinibida, que acabei falando um monte de bobagens que nunca teria dito se ela estivesse olhando para minha cara, como faz normalmente. Depois de um tempo você acaba se acostumando à escuridão, adquire uma nova noção de espaço e percebe que o mundo é ruidoso em seu desenrolar. Eu descobri que odeio jaca, pelo cheiro, e que uma voz quando é irritante, passa a ser insuportável se você não tem olhos para dividir os esforços com os ouvidos.

Dia seguinte fui correndo contar a aventura para minha avó Dorina, cega há mais de setenta anos e para quem não sabe, fundadora da primeira fundação para cegos no Brasil em 1946. Mas antes que eu pudesse terminar a frase, ela me interrompeu de um jeito honesto, e sem um pingo de tristeza na voz. “Sabe Martha, do que eu chamo tudo isso? Uma grande bobagem, uma baboseira sem fim. Vocês vão lá, jantam no escuro e voltam dizendo que agora entendem o que é ser cego. Acontece que no fim da noite você abre os olhos e seu mundo volta ao normal, enquanto que um cego pode tirar a venda, abrir os olhos, que ele não volta a enxergar, nunca mais. Pode até ter sido interessante para você, mas não tenha a ilusão de que você teve um só milésimo da sensação de estar no meu lugar, porque você não teve.”

É, não tive. Ninguém pode se colocar no lugar de alguém. Pode-se tentar com máximo empenho, que é o que eu acho que faço quando atuo e esqueço de mim por algumas horas.

segunda-feira, 20 de julho de 2009

A BALEIA DO PINOCCHIO




De todas as coisas estranhas que andam acontecendo no mundo, entre elas, catástrofes climáticas, quedas de avião, mortes enigmáticas e epidemias que se alastram, de todas elas, que honestamente me parecem conseqüências naturais da vida que levamos, uma coisa me chamou a atenção.

Eu tinha uma pedicure aos meus pés e folheava uma revista qualquer quando bati os olhos na seguinte informação: as baleias, que são animais que se comunicam de maneira sofisticadíssima, andam encalhando nas praias. Cardumes de baleias atolados em nossas areias? Sim, isso porque o volume de embarcações humanas, que é enorme, cria um ruído constante no fundo do oceano; este ruído interfere diretamente na conversa das coitadas, que acabam por se atrapalhar em sua cantoria e em suas rotas. Bom, não bastasse a poluição sonora de nossas cidades, estamos também tirando o sono dos colegas do fundo do mar.

Perto de tudo que vem acontecendo, talvez esta informação não seja tão chocante para alguns, como é para mim. Acho que pelo fato de eu ter uma relação afetiva com as baleias desde a primeira vez em que vi Pinocchio, ou, porque ali, com os pés na bacia, eu tenha sem querer sentido o peso da responsabilidade de habitar um planeta. Uma parcela de culpa que eu esqueço ter na maior parte do tempo, ou prefiro esquecer, porque afinal, o que é que eu vou fazer para ajudar as pobres das baleias?

Pois é, não sei, mas lembro do susto que levei, quando soube pela professora de ciências do pré- primário, que a baleia, apesar de viver na água, era o maior mamífero do planeta terra. O mesmo lugar de onde as abelhas estão desaparecendo e que atualmente nos faz passar pelas quatro estações num dia só. “Esse tempo”, como diz minha avó, “tem estado infame!”. Ela, que costuma fazer pequenas caminhadas matinais no terraço da casa, e que agora, por causa do frio, tem tido que andar em volta da mesa da sala.

Morri de rir quando ela me contou o fato hoje na hora do almoço. Tentei consolá-la dizendo que sua situação de locomoção andava bem melhor que a das baleias brancas, mas acho que ela não me ouviu direito, ou não me entendeu. Só sei que não achou a menor graça.

sexta-feira, 17 de julho de 2009

VASO RUIM NÃO QUEBRA

Um colega sugeriu que eu escrevesse um texto sobre a morte do teatro.
“A morte do teatro?”
“é... algo como a TV matou o teatro ou a internet vai ressuscitar o teatro!”

Por que é que as pessoas querem tanto matar o teatro?
Ele é o primo pobre e intelectual da família, aquele que fica no canto da ceia natalina, fumando escorado à porta, óculos escuros e olhar contemplativo. Ele é de longe o mais inteligente da sala, só não aprendeu ainda a fazer fortuna. E depois de uns copos a mais, ele esbraveja e passa o resto da noite importunando os presentes com as verdades que aponta na cara. Pois é, é o primo mais interessante, embora meio chato e inconveniente quando fala com o dedo em riste e a voz empostada. O primo mala. Será que é por isso que querem matar o teatro? Quando surgiu o cinema, disseram que o teatro ia morrer. Quando veio a TV, disseram que o teatro ia morrer. Então veio a internet e dessa parece que ele não ia escapar. E devem ter dito o mesmo quando inventaram o rádio, mas o teatro não morre, surpreendentemente. Anos atrás teve aquela febre em São Paulo, abriram um monte de mega livrarias e eu achei estranho. Achei que as pessoas não liam mais. Mas surpreendentemente, elas lêem. Se são coisas de qualidade eu não sei, mas o que eu quero dizer, é que assim como lêem, as pessoas continuam indo ao teatro. Em primeiro lugar por que é feito por um bando de amadores que literalmente amam o que fazem. E também por que a experiência com o teatro pode, sim, ser tão insuportável quanto aquela conversa com o primo mala. Aquela conversa onde só ele fala, onde ele pergunta e responde, não ouve a sua opinião, repete mil vezes a mesma coisa, fala mal dos outros e só sabe se lamentar. Mas se você pegar o primo num dia bom, num dia inspirado, ele vai te dizer coisas que você passou anos esperando ouvir. E vai te dizer de um jeito que te fará perder a fala, prender o ar e sentir um negócio estranho ali dentro. E você não sabe se o que sente é bom ou ruim. Então você vai embora para casa pensando que deveria ter comido menos peru, que aquele espaço que a comida está tomando de você, tá fazendo uma puta falta agora. Agora que você precisaria que este espaço estivesse vazio, agora que você precisa sentir.

Eu fujo das conversas chatas, dos meus primos malas e das peças que fazem as pessoas quererem matar o teatro. Entendo elas. Não lembro exatamente quando foi a primeira vez que o teatro me encantou, só sei que toda vez que me sento para assistir uma peça ou entro em cena para fazer parte de alguma, toda vez, eu persigo a sensação desse primeiro encontro. Sabe o casal que passa anos se beijando, esperando que o beijo volte a ser tão bom quanto aquele primeiro? É decepcionante, muitas vezes, mas quando é bom, acaba redimindo todas as noites em que se quis sair correndo no primeiro black out de uma peça. Parece um mau negócio para quem vê de fora, e talvez seja mesmo. Talvez o teatro não devolva metade do que você dá para ele. Talvez ele retribua de um jeito mais tímido, menos óbvio. O fato é que quando damos nossos primeiros passos, o teatro começa em nossa vida, com alguém aplaudindo nosso primeiro grande feito. E não pára mais. Uma coisa é inquestionável, o teatro chegou primeiro, junto com as baratas, e assim como elas, não morre fácil. Por que é resistente, imprescindível e não precisa de muito para acontecer. Já reparou quantos filmes e séries de televisão giram em torno do primo pobre? Já reparou quantas peças estão em cartaz? (eu contei até cem, depois desisti) E já notou que na maior parte das vezes que alguém te conta uma experiência transformadora, não foi com a TV, nem com o cinema, foi no teatro? Talvez ele morra naturalmente, quando o ser humano deixar de ser hipócrita, mas até lá, a presença de um primo mala é necessária, de quando em quando, como um bom espelho pela manhã. E um bom espelho não te esconde nada, nem beleza nem feiúra.