sábado, 31 de julho de 2010

S.P

Arrasto a mala azul turquesa pela rua puta da vida com o taxi que não veio. Nunca mais chamo naquele ponto. Vejo um outro na esquina, aceno, entro. Explico o endereço, falo da pressa e ele sugere cortar caminho pelo elevado. Depois lembra que a essa hora o elevado ainda não abriu. Ele pega um rua errada, me olha no retrovisor. Perde dois faróis, entra na contramão, ruboriza, faz a volta com o carro. A certa altura do trajeto ele me diz:

"Desculpa moça, mas tá difícil, essa sua vibração negativa tá atrapalhando meu trabalho."

"Oi?"

"Você tá muito ansiosa, eu sou sensível. Assim não consigo dirigir."

"Ah..."

Sigo silenciosa no banco de trás. Polida, felizmente.

Ele me cobra dois reais a menos na corrida, gentileza que aceito sem cerimônia.

"Tem muita gente ansiosa em São Paulo moço."

E desco do carro atrasada.

quarta-feira, 21 de julho de 2010

memória

A gente morava num apartamentinho estreito na Place d’ Italie. Segundo minha irmã mais velha, vivíamos espremidos como sardinha em lata, item, aliás, bastante consumido pela nossa família, já que dividíamos em cinco a igualmente estreita bolsa de estudos do meu pai. Era o ano de 1982 e ele estudava medicina em Paris, no instituto Pasteur. Ano de copa. Eu tinha dois anos, lembro de nada, mas minha mãe conta que estava mais preocupada com os hóspedes que chegariam em breve do que com futebol. Eu morava no andar de cima do beliche e não consigo imaginar como foi que ela conseguiu entulhar tantas pessoas em tão poucos metros quadrados. Só lembro de ficar ao pé do fogão esperando por fatias de berinjela frita, “aubergine!, eu gritava para a Marlene, a babá e empregada que tinha vindo do Brasil conosco.

Na copa de 1986 já tínhamos voltado para o Brasil, morávamos acampados na casa da minha avó Dorina e apesar de pequena, tenho a memória viva do sentimento estranho que tomou conta da casa quando o Brasil foi eliminado. Adultos frustrados, a derrota, camisas azuis claras. Eu ainda misturava o francês com o português, sofria, não gostava da escola, não gostava de dividir o quarto, passava horas olhando para um quadro pintado a óleo, uma ruazinha com casas velhas, atrás uma montanha.
A terceira copa da minha vida foi em 1990, em casa. Tínhamos definitivamente parado de morar na casa dos outros, e quando eu finalmente ia ter um quarto só meu, minha mãe engravidou de novo. Minha irmã caçula nasceu com um olhão azul, vindo lá da minha avó materna, acerto de loteria genética. Nasceu fraquinha, com um quilo e oitocentos gramas. Eu lavava as mãos, toda vez que queria segurá-la no colo. No quintal uma roitweiller chamada Lady Godiva, linda, corria o tempo todo. Eu já tinha comungado pela primeira vez e usava um aparelho horroroso nos dentes, do tipo freio de cavalo. Continuava sofrendo com a escola e com o movimento bandeirante, do qual fui forçada a participar. Eu tinha muita coisa com que lidar, nem lembro da copa. Só da viagem que fizemos para a Itália, assim que os jogos acabaram. Antes de se casar com meu pai, minha mãe foi casada com um italiano. Ele morreu e ela voltou viúva para o Brasil, com minha irmã mais velha no colo. Todo ano minha mãe a levava para visitar a bisavó na Calábria. Neste ano fui junto e dancei a lambada para os italianos. “Chorando se foi, quem um dia só me fez chorar” tocava em todos os lugares do mundo. Eu me apaixonei pelo sorvete italiano, “frágola!” e odiei as praias de pedra.

Foi em 1994 que eu finalmente virei uma brasileira, com quatorze anos e fascinada com a copa do mundo. Participava da conversa dos adultos, perguntava o que era impedimento, pênalti, tiro de meta, e o por que da copa não ser no Brasil. Lembro bem do bolão da família, dos chutes quilométricos do Branco e do pênalti do Baggio, por quem minha irmã era absolutamente apaixonada. Ela tinha um pôster dele no quarto, dele e do Tom Cruise. A gente assistiu a copa na fazenda e eu não perdi um jogo. Uma alegria indescritível tomou conta daquelas férias quando o Brasil ganhou, uma coisa tão maior do que tudo que eu já conhecia, que não sabia ao certo como fazer parte daquilo. As pessoas ficaram felizes por dias. Na tarde que fomos campeões, lembro que peguei um livro do Simenon na estante da sala para ler: “Ainda existem aveleiras”. Era um livro melancólico. Eu lia e ficava triste. Depois lembrava da copa, ficava feliz. Na verdade não entendia bem a história, era muito nova, mas li até o fim, com medo de desapontar meu avô, que lia no sofá ao lado.
Alguns anos depois meus pais se separaram, e como o escritório dele ficou livre, eu finalmente ganhei um quarto só para mim. Mas agora a casa estava triste. E vazia. A Godiva teve que ser sacrificada, um dia de manhã, antes de uma prova difícil de matemática. Eu estudava numa escola forte, a noite fazia o curso profissionalizante de teatro no Célia-Helena. Em 1998 fui para a França, sozinha, e fiquei hospedada na casa de um grego, Kostas, grande amigo do meu pai dos tempos do Instituto Pasteur. O jogo da final assisti com a Julia e Felipe, amigos do colégio que acabei encontrando por lá. Fomos num café, bem parisiense, com muitos parisienses, e a bandeira do Brasil nas costas. O Brasil perdeu. As convulsões. Franceses nos cercando na cabine telefônica que eu tinha entrado para ligar para São Paulo. O metrô quebrou e tivemos que descer na Champs Elysées, no meio de um oceano de patriotas que gritavam e cantavam a marselhesa como se tivessem vencido alguma guerra. Minha bandeira verde amarelo nas costas era uma espécie de Moisés que abria espaço em meio ao mar azul francês campeão. Não havia taxi, nem escapatória. Não conseguíamos chegar em casa, nunca mais chegaríamos em casa. Um desespero. Sentamos desolados na calçada, e ainda com a bandeira nas costas, chorei. E no ápice do pior momento da noite, estaciona a nossa frente um carro velho, amontoado de portugueses, que com seu sotaque típico, assim gritaram para nós: “Brasil, amigo, Portugal está contigo! Brasil, amigo, Portugal está contigo!” Cantaram esses versinhos infames durante alguns minutos e partiram. Nós acabamos conseguindo carona com dois tunisianos e dois dias depois, cansada das piadas que os franceses não perdiam a oportunidade de fazer, peguei um ônibus para Praga.

É o ano de 2002 e eu estou formada em teatro e cinema. Trabalho. Saio da casa da minha mãe, passo uns tempos na casa do meu pai. A copa deste ano foi um grande pretexto para as baladas. Emendava as noitadas com os jogos matinais. Quando o Brasil foi pentacampeão lembro, se é que lembro mesmo, de passar três noites em claro, a base de trigo e cevada. Ia de um canto ao outro da cidade, ziguezagueava pelos botecos e casas de amigos. A impressão de que aquela comemoração não acabaria, de que as pessoas nunca mais sairiam das ruas e de que eu não chegaria mais em casa. Depois passei dias afônicos, muda, exausta. A copa da ressaca.

Um dia recebo o telefonema do meu pai, contando que tinha conseguido ingressos, que ia levar toda a familia para assistir a copa na Alemanha. Era 2006, eu estava em cartaz e não podia ir. A família toda foi na frente e eu passei o começo da copa assistindo os jogos na rua Maceió, apartamento que dividia com uma amiga, enquanto todos eles assistiam os jogos in loco. Minha passagem para Munique ficou marcada para o dia seguinte depois da última apresentação de “Chapa Quente”. Acontece que o Brasil perdeu antes que eu pudesse chegar lá, e eu, consegui a façanha de me apaixonar por um moço numa festa, na véspera da viagem. Cheguei na Alemanha, não vi nenhum mísero jogo e passei a viagem toda comendo schnitzel em família e pensando no moço. Na época pareceu um desperdício, embora hoje seja uma boa lembrança. Percorremos a Alemanha de carro, por estradas inteiras margeadas pelos moinhos de vento. Foi a primeira vez que vi um GPS, e nunca poderia imaginar que hoje, embora eu não saiba usá-lo, existe um modelo disponível no meu celular.

Estamos em 2010. O Brasil foi eliminado da copa. Tenho dois fios de cabelo branco que não ouso arrancar, porque tenho certeza de que eles nascem em dobro. Moro com um gato preto, um namorado e pago muitos impostos. Já não tenho mais um quarto só para mim, mas é por um bom motivo. Enquanto o Brasil durou, a copa roubou parte do público da minha peça e atrapalhou todos os meus compromissos. Ao vivo, num programa de televisão feminino, a apresentadora pergunta para quem eu estou torcendo agora. Respondo que para a Argentina. Todos os câmeras e microfonistas do estúdio voltam-se para mim. A apresentadora sorri amarelo. “Jura?”, É verdade", replico.

quarta-feira, 14 de julho de 2010

casa camarim

o teatro: um negócio que você constrói, sempre do zero, do solo. Ergue as paredes, passa os fios, coloca as tomadas.Quando a casa fica pronta, você entra e sai dela, milhares de vezes, até dominar, ou achar que domina, cada pedaço do trajeto. Dentro da casa uma familia, os barulhos, cheiros, a torneira quebrada, coisas com as quais você se habitua por gosto ou osmose. Um dia você estaciona seu carro, maquia, dá um gole no café, ouve atentamente o trecho inicial da trilha, pensa que deve pedir para alguém gravar um cd, entra em cena, faz a peça. Sai de cena. Na platéia uma moça, parecida comigo, me avisa que é o último dia de peça, pelo menos desta temporada. Que depois de tudo, da casa erguida, da maquiagem limpa, dos varais estendidos, o espetáculo acaba. Como todos os outros. "Já?", pergunto. Ela mostra os dentes, ri. Se abaixa para buscar um batom que rolou por baixo das cadeiras. "Você nunca vai se acostumar?".

Nunca.

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Caco. Muito obrigada. Fê... Chris, Cynthia, Mari, parceiras, amigas de cena e coxia, meninas e meninos, Simone, Ofélia, Rey, Ju, Fabi, Guilherme, Carca, Arara, Fred, Erika, a todos, muito obrigada, a cada um de vocês. Sei que voltaremos em breve, com essa e com outras! Valeu.