Treze anos trás fui ler as cartas com um cigano em Santo
André e ele estava em cima da mesa: um gato preto lindo, ronronando na lisura
das cartas do baralho.
“Sempre quis ter um
gato preto”, eu disse, o que era mentira, pois o meu amor pelos bichos
sempre foi dedicado aos cavalos e cachorros. “Pode levar”, Juan respondeu,
“tem uns cachorros aqui maltratando
dele”. Eu perguntei se ele queria vir comigo e ele pulou no meu colo em resposta.
Na época morava com a Guta na rua do Sujinho e achei que ela não ficaria feliz
em me ver chegando em casa com um gato no colo. Prometi que voltaria depois e assim
que fui morar sozinha cumpri o combinado. (Fiquei com medo do cigano ficar de
mal comigo se eu não fosse e vai saber...)
Então, de repente, eu tinha aquele bicho preto, elegante,
asmático e com uma orelha quebrada enfiado embaixo do colchão. O cigano disse
que eu tinha que passar manteiga no peito dele e que quando ele lambesse a manteiga
esqueceria o antigo dono. E quem disse que eu conseguia tirar o Romit do forro
do colchão? O quarto todo ficou
besuntado de aviação e ele demorou uma semana para sair de lá.
Alguém disse que eu deveria por tela de segurança nas
janelas. Eu levei o Romit para o beiral, e meio “à la Michael Jackson” estendi
ele para fora no ar e disse: “Tá vendo, se você pular aqui é ruim para você.”
Ele aprendeu. Morei no terceiro, no quinto, no vigésimo terceiro, no térreo e
no quinto andar de novo. A cada nova casa eu levava ele para a janela e
mostrava o perigo da queda. Ele nunca se arriscou. Romit gostava de viajar. Foi
comigo para São Francisco Xavier, para Mauá e para Cafelândia. Todo mundo dizia
que eu estava louca de deixar ele solto na mata, mas eu sempre deixava, e ele
sempre voltava. Adorava grama. Era um gato carente, amoroso, fácil e dado.
Tirando a parte do fácil, era meio como a dona. De vez em quando parecia uma
pantera e eu lembrava de como a natureza é perfeita.
Uma vez li que quando
a gente estivesse triste bastava olhar para nosso bicho para sorrir. É verdade
cem por cento. O bicho no sol, o bicho miando de fome, o bicho fazendo xixi no
tapete de propósito, o bicho brigando com um inseto, o bicho roubando a comida
do jantar na pia. É ternura na certa.
Ao mesmo tempo que vivem para você, os bichos acham que você veio ao mundo para
servi-lo, ou seja, uma relação totalmente equilibrada e justa. Às vezes enchem
o saco, uivam como lobos justo na madrugada que você está com tosse, riscam sua
parede, arranham o sofá novo, a cadeira de design, vomitam na almofada, sobem
no computador, na televisão, no roteador. Perseguem seus amigos mais alérgicos na
festa, sujam a casa de pelo, atrapalham sua meditação. Mas às vezes deitam na
sua barriga bem na hora da cólica ou da fossa. Ele está lá com você. Ele não
tem whatts app, skype, e-mail. Ele quer carinho, comida, água fresca e um lugar
digno e limpo para as necessidades. E também uma fresta de sol para se banhar
uma vez ao dia.
“Gato preto dá sorte”,
foi o que o Ary França me disse quando o Romit me adotou. Dito e feito. Romit
presenciou minhas maiores lambadas: ensaios, casamentos, banquetes e comidas
queimadas. No choro e na vela, ele segurou a onda nas viagens, quando ficou a
mercê dos cuidados de zeladores, faxineiros ou de amigos como Michel Laub e
Caco Galhardo. Presenciou minhas voltas embriagadas nas madrugadas de nuggets e
ressacas solitárias. Meus impulsos matinais de mudar o mundo ou pelo menos a
decoração da sala. Me fez companhia na hora do baby liss e da maquiagem. Me
acordou para filmar quando o despertador falhava. Caçou baratas e me fez
companhia quando eu chorava sentida a perda de um amigo ou o fim de um namoro.
Assistiu os piores reality shows na tv sem antena e todos os filmes do Godard.
Romit foi co-autor do meu livro de poemas, dividiu miojo e salmão defumado
comigo.
E hoje ele morreu. Tinha um câncer brabo. Mas eu, ingenamente,
tinha certeza de que ele responderia à ozônioterapia com sucesso. Mas lá pela
hora do almoço, no meio do tratamento, teve uma parada cardíaca. Desfaleceu no
chão sem vida. Os olhos antes verdes agora pretos sem luz. O corpo sem tônus,
entregue. Ele no meu colo, morto. Vida e morte separadas por um instante.
Viveu mais de quinze anos e foi um gato excelente. Esperou
que eu encontrasse um novo lar com João e seus dois filhos. Os três
mosqueteiros. E me deixou assim, bem segura e aconchegada. Parece besta dizer
isso, mas sempre vou amá-lo e sinto uma gratidão infinita por ele ter sido meu
companheiros por mais de treze anos. Ele é meu special date, meu cavalheiro
felino negro de todas as horas, meu gato preto.
Dizem as boas e más línguas que Romit tinha o pelo mais
macio do mundo. Enterrei ele hoje numa manta de lã vermelha no quintal da casa
do meu avô, que por sinal, adora gatos. Voltei para casa e imaginei ele se
decompondo sozinho embaixo da terra fria. Chorei. Depois imaginei seu espírito
de gato feliz me olhando e chegando no céu dos gatos coberto por guloseimas,
amor e carinho. O gato mais macio do mundo.