segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

Então eu comprei a mesa de centro, e achei que tudo estaria resolvido. E pintei uma parede de azul, e a outra de rosa. Você é corajosa, me disseram. Muito bem. E aí derrubei uma parede, dois armários, peguei a madeira restante, fiz um closet e achei que tudo estaria resolvido. Coloquei todas as roupas dentro e pensei: agora sim. tudo resolvido. E trabalhei e trabalhei e trabalhei. E achei que tudo estava sendo resolvido, que havia graxa suficiente na engrenagem. Depois comprei um filtro de barro, e um tapete belga, acho, para o banheiro do meio. Alguns dias depois pintei a pia do banheiro do meio de vermelho sangue. E coloquei uma foto do meu bisavô em cima dela. E achei que o tapete belga combinava com a cara do bisavô. E que tudo seria resolvido. E trabalhei. Sem brecha. Por que de fato as coisas estavam sendo resolvidas, ininterruptamente. A vida. Passei a tomar um copo de suco de uva orgânico por dia. Inclusive em manhãs de ressaca. Coloquei uma esteira ergométrica alugada dentro de casa e plantei um ficus atrás do sofá. Comprei um pote de lavanda, manjericão, alecrim. Por que com uma horta na área de serviço, o que poderia não estar resolvido? Revolvido. Rebobinado. Solucionado. Veio o calor. Mudei a posição da mesa do escritório. Reli alguns poemas de W. W., e tentei cantar a mim mesma naquela noite. Pus um rádio do lado do chuveiro e tomei inúmeros banhos ouvindo esta música. E toda água que escorria pelo ralo, após a intimidade de lavrar o corpo, toda água, toda gota dela, cada molécula de hidrogênio com oxigênio, escorria pelo ralo junto com a sujeira, sabão e o mesmo pensamento: agora sim. tudo. tudo resolvido. E depois de pintar a última parede de cinza, comprar o papel de parede, a cola, regar as plantas, não há nada mais o que possa ser feito por aqui. Na casa. A não ser viver nela.

quarta-feira, 9 de fevereiro de 2011

Cachorrada!

E lá estava eu. Atrás de um homem com o dedo cortado envolto num guardanapo ensanguentado e na frente de um tipo com um trauma interno. Há duas horas, numa fila do pronto socorro, com uma mordida na coxa direita bem maior do que se imaginaria por aquele tipo de cão. "Trinta? Você tá tão assustada que achei que fosse mais nova..." disse a enfermeira. "Água com sabão, melhor que muito remédio.", ela dizia rindo. Engraçado como esse povo ri em salas de pronto atendimento. E você inerte, naquela maca molhada do álcool recém-evaporado do caso anterior."Tá doendo.", choraminguei, "Ah, dói mesmo, parece que o bicho agarra lá no músculo de um jeito que, olha, dói muito."

Paracetamol.

O Parque da Redenção, mesmo cenário da briga que tivemos no dia anterior. Não havia quase gente, só um monte de árvores, terra e brisa. De repente aquele cão, fincado na minha coxa direita. E um velho afobado, magro, mais raivoso que o próprio animal. E eu, pega absolutamente de surpresa como quase sempre na vida. Anti tetânica, anti-rábica, gaze e esparadrapo. A vida continua, ainda que doa. O roxo cresceu com o passar dos dias, a embocadura do bicho gravada na carne inchou, e a ferida começou a fechar. Enquanto isso, minha raiva de tudo minguava a cada hora. Não sei o que aquele cão viu em mim. Astor, seu nome. Mas ele deve ter farejado alguma coisa. Seja lá o que for, deixei tudo o que pude naquele parque, no hospital e nas salas de cinema onde me enfurnei nos dias subsequentes.