segunda-feira, 20 de agosto de 2012

A primeira confissão


A primeira confissão, por Martha Nowill

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MARTHA NOWILL
ESPECIAL PARA A FOLHA
Quando eu tinha oito anos, tudo o que queria era uma Bic de dez cores e sentir Deus dentro de mim. Me frustrava não poder entrar na fila da comunhão com os adultos.
Só me restavam as funções menos nobres de cumprimentar a igreja inteira quando o padre mandava saudar a "paz de Cristo" e a de depositar dinheiro na cesta de doações. Obrigações que cumpria com a eficiência de um coroinha, já que, no tempo restante da missa, eu me abandonava, nos bancos gelados de madeira, à espiral das minhas inquietações infantis.
Arquivo pessoal
A atriz Martha Nowill, aos oito anos, na primeira comunhão, em 1989
A atriz Martha Nowill, aos oito anos, na primeira comunhão, em 1989
Tinha perto de casa uma igreja que eu achava muito feia. Era toda de madeira e pedra, sem cor nenhuma, sem dourado na borda, sem santo nem auréola, nem qualquer umas daquelas imagens assustadoras de lanças e dragões que eu adorava observar durante o sermão. A gente tinha se mudado havia pouco, e foi lá que passei a imaginar, a cada domingo, como seria meu encontro com Deus.
Se a gente mordesse a hóstia, sairia sangue de Jesus de dentro? E se a gente comesse muito, o corpo de Cristo iria se misturar à macarronada de domingo? Essas questões me atormentavam, e eu não via a hora de ser adulta para dormir tarde, ir ao baile de Carnaval, comungar e matar minha curiosidade. As noitadas teriam de esperar, já Deus eu conheceria em breve, nas aulas de catequese.
Um homem que abria o mar com um cajado, uma mulher que engravidava de uma pomba, um planeta inundado e uma arca com todos os bichos dentro, um grande pai que era três e que ainda por cima me amava, embora eu talvez não merecesse. De que mais uma criança de oito anos precisava?
De um vestido. E começavam os burburinhos na escola em torno do tema. Minhas amigas já tinham ido à costureira meia dúzia de vezes, já tinham as pérolas do bordado, as rendas no colarinho, ao passo em que eu era enrolada no caos da agenda da minha mãe.
Ela estava grávida de muitos meses, e toda atenção que deveria estar voltada à minha primeira comunhão era diretamente desviada para a chegada da caçula. "Não se preocupe, é uma bata de seda lindíssima", ela dizia. E eu repetia no recreio: "Ainda não experimentei, mas é uma bata de seda lindíssima". Por algum motivo a palavra seda causou certa impressão nas colegas e em mim. Seda, seda, seda. Aquilo me confortava.
Minha madrinha, a par da minha ansiedade, me arrumou hóstias não consagradas para que eu pudesse matar a curiosidade do gosto. "Essas se pode comer, ainda não são o corpo de Cristo", ela me disse, colocando algumas na palma da minha mão. Devorei-as por gula, mas sem grande deleite. Apavorada, pensava: "Ainda bem que não são o corpo de Cristo, imagina se deixo Jesus cair no chão..."
Para ir ao encontro de Deus eu precisava ainda de uma lista de pecados. Às vésperas da minha primeira confissão, passei uma tarde de sábado, em vão, tentando enfileirar alguns nas linhas do papel. Por fim, inventei um ou outro, com medo de que o padre não acreditasse na minha inocência.
No dia 2 de dezembro de 1989, na igreja de Santa Terezinha, me aboletei num banco com minha bata branca, que de seda nada tinha. Eu era uma espécie de franciscana com uma cruz de madeira pendurada ao pescoço e uma coroa de flores que me pesava como se fosse de espinhos.
As meninas eram minidebutantes, e só não me aborreci mais porque, de algum jeito torto, acho que intuí que minha veste simplória resistiria melhor à atemporalidade do álbum de fotos. E elas não escondiam a decepção. "Mas não era de seda?", repetiam enquanto desfilavam seus vestidos rodados, rendados, bordados.
Mas o mais importante era que finalmente eu era digna da visita de Deus. Isso me enchia de vaidade, amor e alegria. Não senti nada quando a hóstia começou a derreter na língua, mas senti Deus explodindo nas minhas veias a cada passo da ida ao altar, em cada gesto dentro do figurino branco, diante das câmeras VHS, dos pais, tios e curiosos da plateia cheia. Minha primeira caminhada como atriz.

terça-feira, 7 de agosto de 2012

teria graça se fosse de outro jeito?





É um filme. Tem o personagem do homem que vai ao cassino. É um meio de tarde e ele nem está tão arrumado quanto pediria a situação.  Num único ato de imprudência ele junta todas suas fichas, as pretas, verdes, vermelhas listradas de branco, todo o seu carrossel milionário de cores e aposta tudo numa jogada só. Lembra dessa cena?  De alguma parecida? O homem sente um frio enjoativo na barriga, um sopro no coração, uma câimbra nos dedos da mão. Uma senhora ao lado mordisca a segunda azeitona do Dry Martini enquanto lembra da última vez que teve tanta ousadia. 

Ele vai perder, arrisca o palpite. 

Uma dupla de turistas japoneses ri. O funcionário da casa repara que  o pulso de sua camisa branca está consideravelmente amarelado enquanto recolhe guardanapos amassados.

A roleta gira vagarosamente aos olhos do apostador, rápida aos do expectador. Metade da sala do cinema acha que ele vai perder. A outra metade torce pela sorte do herói. O homem se contorce em cálculos matemáticos renais enquanto o cheiro de fritura escapa da cozinha do cassino. A medida que a roleta gira ele dissolve. E sentir é o que basta para ser.  Desavisadamente, é o que eu quero que você faça. Aposte tudo o que você juntou na vida inteira. Em mim. Veja bem, eu não sou aquela moça do casaco de pele que fica na ponta da mesa de feltro verde e que vai beijar seus dados para te dar sorte. Eu não sou a fortuna que você está prestes a ganhar ou perder. Eu sou a própria roleta. E nós não estamos na tela do cinema. Ninguém torce contra ou a favor de nós.  Eu não posso te garantir nada. Mas não consigo te pedir menos do que tudo.