sábado, 20 de fevereiro de 2010
diário do carnaval em Berlim
(a neve e eu)
quinta-feira de carnaval
Chego atrasada, ironica e distraidamente carregando um copo de coca-cola do Mac Donalds na Bertolt Bretch Platz. A estátua do autor em questão tem gelo até as canelas. Assisto "Mutter Courage" e mais uma vez chego a conclusão de que algumas peças, ainda que universais, fazem mais sentido na língua mãe. Se um alemão assiste uma versão de "Morte e vida severina" em Berlim e depois assiste no Brasil, por exemplo, ele provavelmente terá a mesma sensação que eu tenho assistindo B. B, numa montagem do Berliner Ensemble depois de ter visto dezenas de vezes em outros lugares. É como apertar a tecla sap. Depois volto para casa de metrô e, pela primeira vez, sem comprar o bilhete.
sexta-feira de carnaval
O dia do nu. Vou ao museu Helmut Newton e vejo aqueles nus maravilhosos em tamanho quase real. Milhares de fotos, mulheres lindas, dos anos 60,70,80,90. Uma depilação quase demodé e a fixação pelos saltos. Me arrumo bastante neste dia, sei que a possibilidade de me sentir menos bonita do que todas as mulheres do mundo é real. Saio de lá e vamos para a sauna, um barco flutuante no canal congelado. É proibido entrar entrar em trajes de banho, ou qualquer peça de roupa que não seja a própria pele. Diante da ameaça de um funcionário tatuado com cara de bravo, que joga eucalipto nas pedras como se estivesse no cirque du soliel, tiro a parte de cima do biquini. Nunca vi tantos homens pelados por metro quadrado, uma avalanche quase claustrofóbica. Por alguns minutos o João vai para sauna de 60 graus enquanto que fico na de 90. Eis então que recebo uma paquera, na cara dura. Definitivamente, ser assediada em trajes, digo, não trajes de banho, as três da manhã, em uma sauna berlinense, é uma coisa bem esquisita. Não sei se recomendo.
(eu e a neve)
sábado de carnaval
A cidade está cheia por causa da Berlinale, tem até um pouco de trânsito. Berlim pode ser uma grande metrópole, mas tem, ao mesmo tempo, uma calma interiorana. Dou uma volta pelo frio, saio para comer com as crianças e o dia escurece. Tomo uma becks na banheira quente e vou para cama cedo.
domingo de carnaval
Hoje é estréia do filme do Esmir Filho no festival. A sessão está cheia, equipe no palco. Depois assisto um espetáculo de dança-teatro com tudo que menos gosto do teatro associado ao que mais me aborrece na dança; apesar da qualidade do trabalho dos bailarinos. Enfim, foi chato. Mas as festas do festival, que vieram em seguida, foram bacanas. Eu até pude dançar umas marchinhas, o que me faz lembrar, no meio da madrugada, que é carnaval no Brasil.
(eu, a champanhe e a neve ao fundo)
segunda-feira de carnaval
Uma ressaca absurda, neva lá fora eu acordo suando frio na cama. Pegamos um taxista árabe, o cara fala sobre a colônia árabe no Brasil, pergunta sobre um tal de Maluf. Me arrasto do banco do carro até um cinema enorme, uma mistura de maracanã, com teatro municipal. A sessão lotada de "Exit through the gift shop", um filme bom, sobre um cara que que quer fazer um documentário sobre o Banksy. Imagino se ele não está por lá, a paisana. Começo a me despedir da cidade. Encontro com a Guta Ruiz, recém-chegada na Alemanha, odiando a Alemanha, os alemães, os taxistas. Tento contar que também passei por isso, que vai melhorar, mas ela parece não querer dar mais uma chance a cidade.
terça-feira de carnaval
Meu último dia em Berlim. Saio para almoçar no asiático com Camila, brasileira residente na cidade, e Guta, que resolveu espremer uma espinha na cara e agora, além de estar odiando a Alemanha, tem o lábio superior ligeiramente inchado. Depois vou tomar um lanche de despedida com as crianças, fico um pouco triste. Assistimos Bob Wilson no Berliner Ensemble e gosto tanto da comida do almoço que resolvo repetir no jantar. Uma overdose. Durmo em cima das malas.
quarta-feira de cinzas
O único engarrafamento que presenciei na cidade aconteceu bem na hora que eu ia para o aeroporto. O João me lembra que não comi salsichas durante a viagem. "Meu Deus, eu na Alemanha sem comer nenhuma salsicha, que pecado." E corro para o balcão das salsichas no aeroporto de Tegel, e quase me puno por não ter comido esta maravilha antes. Como uma, duas, e só não como a terceira porque chamam meu vôo para Frankfurt. O João fica mais uns dias na cidade com os filhos. Já no avião, derrubo, juro, um copo de suco de tomate em cima de mim e do alemão no lado. Passo todo o vôo no banheiro lavando minha camisa e a dele. Na segunda parte da viagem o avião chacoalha muito.
quinta-feira dia 18
Chego viva em São Paulo. Penso no absurso que é a mudança físico-espacial para um corpo que atravessa o globo em doze horas. Meus pés estão inchados. Conto para minha mãe que só fui comer salsichas no último minuto da viagem e estou inconformada com isso. Ela ri de mim, diz que foi melhor assim, pelo menos para minha saúde. São Paulo é cara, e como é cara. Me dou conta de que São paulo é uma cidade que você dificilmente consegue se divertir com pouco dinheiro, ao contrário da Europa. Chego a conclusão de que preciso ganhar mais, e já chego trabalhando, quarta-feira de cinzas pós meio-dia, como boa paulista que sou. Assim esqueço a saudade.
(eu, a salsicha e não se vê, mas lá fora, a neve)
ps: não tenho autorização de imagem dos outros personagens, por isso o álbum é um pouco egocentrado.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010
Já não neva mais.
A temperatura caiu e o gelo endurece quase como se calcificasse, o que deixa as ruas mais lisas que pistas de patinação no gelo, com o detalhe que você está sem os patins. Vimos no jornal outro dia "Muitas pessoas com costelas quebradas chegam aos hospitais de Berlim". Eu mesma levei um tombo feio ontem, correndo para pegar o ônibus das 15:07 minutos. Rasguei a calça nova, esfolei a pele e ganhei um galo nos joelhos.
O frio é uma coisa acumulativa, você sai de casa encapotado e pensa "Ah, não está tão frio...". Cinco minutos se passam e o frio atravessa seu casaco sem pedir licença, e este é o momento que você pensa "Nossa, na verdade está meio frio...". Mais dez minutos e o frio alcança seus músculos e você chega a conclusão de que realmente deveria ter posto aquela meia-calça extra. No fim de meia hora o frio já alcançou seus ossos, você não sente as extremidades, maldiz o momento em que resolveu sair do seu país e só te resta procurar abrigo.
Além de levar um tombo fiz algumas coisas interessantes estes dias. Vi a exposição de um desenhista muito bom chamado Walton Ford, essa imagem aí de cima é dele, tudo em telas gigantes. Também fui à Filarmônica e vi um concerto clássico lindo, no meio uma performance moderna do Ligeti, o mesmo cara que compôs a música do 2001. Paguei 10 euros e sentei no melhor lugar da casa. Sorte de principiante. Já comi no indiano, no turco, no árabe, tailandês, chinês, alemão, italiano e cozinhei um arroz com peixe só com alho e cebola em casa, numa tentativa de fugir deste tempero todo.O pão aqui é de primeiríssima qualidade e outro dia ouvi um brasileiro dizendo que um dos motivos dele morar aqui era por causa do pão. Teve também as baladas, as pesadas e as leves. Caí num lugar onde as pessoas entram sexta à noite e saem domingo fim de tarde, Panorama. Depois de alguns drinks venenosos de vodka com melância fui levada à força para casa, coisa que detestei na hora mas agradeci muito no dia seguinte. Conheci o mercado de pulgas, os brechós, especialmente um que vende roupa a quilo chamado Garage, as galerias de arte da LinienStrasser e a catedral. Passei por muitas ruas que não sei pronunciar o nome, entrei em muitos cafés, cinemas e mercadinhos de esquina. Também devo confessar, já fui algumas vezes na H&M, garimpar peças de fim de liquidação, o que para mim é fácil, porque ao contrário do Brasil onde as lojas só tem P e M, e o G mais parece um P, as mulheres aqui são grandes, por isso não faltam tamanhos reais nas araras.
É uma cidade moderna, jovem. Se toda a cidade estivesse pixada, não seria algo muito berrante. Exceto na Filarmônica, eu quase não vejo gente mais velha por aqui, parece que todo mundo tem dezessete ou trinta e quatro anos de idade. Talvez seja por issso que eu não tenha gostado de Berlim à primeira vista, ou talvez porque os alemães podem ser bem grossos de vez em quando.
Mas depois de um tempo Berlim parece mais acolhedora e eu já tenho vontade de esticar a viagem. Especialmente porque agora, depois de dias de martírio e pé gelado, encontrei a bota perfeita: é bonita, não escorrega tanto, não aperta, relativamente impermeável, é comprida e deixa o pé aquecido. Se você está lendo este texto num país tropical, estas informações podem não parecer relevantes, mas para mim, foi quase uma guerra encontrar estas botas. As lojas de sapato não estavam preparadas para o frio que fez algumas semanas atrás e o estoque esgotou em poucos dias, em quase todos os lugares. Entrei em quase todas as lojas de sapato da cidade, e depois disso, posso dizer com convicção que meu namorado é o homem mais paciente do mundo. Pelo menos no inverno.
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010
tema
neva dentro das casas
gavetas
e nos bolsos
neva nas óperas
onde se espera
para tossir
entre uma peça
e outra
neva nos arcos
dos violinos
nas testas
dos operários
do som
neva na fúria
e na doçura
dos meninos
meninas
e nos tolos
nas televisões de plasma
vasos
trilhos
em alguma coxa tenra
de mulher
ave
ou sonho
neva nos pensamentos recorrentes
entre os dentes
no rouge
cílios,
neva neve fresca
no gelo antigo
sujo de lama
e pedregulhos
que a terra rejeita
ou absorve
neva na terra
pelo ar
sobre a água
para o fogo
gavetas
e nos bolsos
neva nas óperas
onde se espera
para tossir
entre uma peça
e outra
neva nos arcos
dos violinos
nas testas
dos operários
do som
neva na fúria
e na doçura
dos meninos
meninas
e nos tolos
nas televisões de plasma
vasos
trilhos
em alguma coxa tenra
de mulher
ave
ou sonho
neva nos pensamentos recorrentes
entre os dentes
no rouge
cílios,
neva neve fresca
no gelo antigo
sujo de lama
e pedregulhos
que a terra rejeita
ou absorve
neva na terra
pelo ar
sobre a água
para o fogo
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