segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Dorina

Era uma manhã de domingo e eu devia estar choramingando por alguma bobagem ocorrida na madrugada anterior. Eu abro o jornal e minha avó é capa da revista da folha. Não que isso não fosse familiar para mim, que passei a infância e adolescência vendo ela trabalhar, viajar, aparecendo em noticiários, recebendo homenagens. Mas nesta ressaca de domingo do ano de 2009 a coisa me pegou de surpresa. "Meu Deus, é minha avó, aquela velha cega que tocava órgão para os netos enquanto a gente trocava a cor das lãs de seus tapetes. É minha avó e mudou o mundo para melhor, com suas unhas, dentes e dedicação." Contraditóriamente a este ímpeto revolucionário, minha avó sempre gostou de usar a palavra resignação. Ela dizia que muitas pessoas já a haviam criticado por conta disso, mas ela explicava , mais ou menos assim: quando você se resigna, não quer dizer que você desistiu, mas é importante aceitar, para depois poder mudar. "Aquele que sabe aceitar se torna um fortaleza, ninguém o vence."

E assim minha avó ia, intercalando a força de um furacão com a paciência de um agricultor. Acho que foi só naquele domingo que eu de fato pude enxergar a grandeza de sua existência. Na segunda-feira liguei para ela: "Vó, e você nunca se deprimiu? Quando ficou cega, não ficou desesperada?", "Olha Martha, fiquei triste sim, mas deprimida nunca. Eu tenho uma mola em baixo de mim, quando algo me puxa para baixo, eu reajo para cima." A frase me soou como um sermão, já que eu vivia choramingando no juizado das pequenas causas da minha vida. Pois é, depois disso, nunca mais me abati por bobagens. Ou pelo menos tento.

Desde esse dia passei a fazer entrevistas com Dorina, "que vem do ouro", e acho que peguei seus últimos meses de memória plena. Percebi que a nova geração não conhecia seu trabalho e sua história, e contei a ela que queria fazer um filme sobre sua vida, e que gostaria de interpretar o seu papel. Ela ficou feliz, quis ajudar, opinar, e durante um tempo nos ocupamos disso. "E você acha que alguém realmente vai querer ver este filme?", ela perguntava. "Não sei vovó, mas eu quero fazer."

Sábado fui no hospital visitá-la e já era de noite. Fiquei curvada na cama, com meus ouvidos atentos em sua boca.

"Nossa senhora veio aqui. Duas vezes."
"Jura vovó? e o que ela te disse?"
"das dores."
"não entendi."
"Nossa senhora das dores."
"e o que foi que ela te disse?"
"tá muito quente, desabotoa a camisa?"
"o que foi que Nossa senhora te disse, vovó? eu quero saber."


Silêncio.

"Você quer falar comigo sobre alguma coisa? sobre o quê?"
"Bobagens."
"O quê?"
"quero falar sobre bobagens."
"tá bom vovó, mas você sabe que sou eu que tô aqui, né? Sua neta, Martha."
"Eu tô em paz, filha."


Tudo isso foi dito entre sussurros quase inaudíveis e o carinho constante que sua mão enfaixada me fazia na bochecha. Hoje seu velório parecia a arca de noé. Jovens, velhos, cegos, videntes, banqueiros, artistas, senhoras da sociedade, políticos, voluntários, estilistas, escritores, cães guia e todo tipo de gente, de todo tipo lugar. Ela recebeu 74 coroas de flores que não couberam na fundação e deram a volta no quarteirão de seu túmulo no cemitério da consolação. Um mar de flores. Arranjos assinados pelos mais diversos remetentes: da associação escandinava de São Paulo, ao governador, o presidente e sua mulher; passando pelo cartunista que a desenhou, aos funcionários das ongs que ajudou; das associações das mulheres, à associação dos tabeliões; das mais diversas familias amigas e empresas que você pode imaginar; das paróquias aos bancários, das pequenas editoras às grandes emissoras, das farmácias aos hospitais, de todos os tipos de trabalhadores, artistas e grupos que existem no Brasil. Por que minha avó era assim, amiga de muita gente, dos mais necessitados aos mais poderosos, gostava de todos com igual respeito e entusiasmo. E nunca fez nada sozinha, sempre soube incendiar os outros com suas ideias. Sempre soube pedir ajuda.

E eu estava lá, muito bem vestida, que é outra coisa que minha avó me ensinou: a elegância. Quem conhece dona Dorina sabe o quão vaidosa ela era. Sabia de cor e salteado a posição de cada centímetro de roupa de seu armário. Minha mãe costumava ir com ela para ajudar nas compras. Ela deixava as vendedoras loucas, sempre descobria os defeitos das roupas pelo tato, melhor do que qualquer um que estivesse a examinar a peça com os olhos. Ela também sempre teve uma opinião diferenciada quando assistia minhas peças, nada passava desapercebido pelos seus ouvidos. Você podia jurar que ela estava enxergando quando ensinava os caminhos para os taxistas ou reclamava dos meus pés no sofá. Minha avó não podia ver ninguém excluído, queria que a festa fosse para todos. E foi por essa inclusão dos deficientes no mercado de trabalho, na vida social e em todos os outros setores da sociedade que ela batalhou. Dia após dia.

Quando penso nela, tenho vontade de rir, por que ela sempre foi bem humorada, é dona de pérolas como "Quem não sabe obedecer não sabe mandar." ou "Para descansar você tem a eternidade.". E depois de rir sempre me emociono com o prazer que ela tinha de viver, de fazer as coisas. Com sua alegria e gula pela vida. Com sua infinita generosidade, bondade, e como tudo isso era espontâneo, verdadeiro, coerente e cada dia mais raro de ser ver. E depois me sinto forte, por que lembro que um pouco disso tudo também corre em mim. E daí já saio correndo, para poder ter tempo de fazer jus ao nome que carrego.

um beijo vovó,
nesta terça estreio mais uma vez no teatro e farei a peça com o pensamento em você
te amo com eterna gratidão
e saudades
Martha

"Quando visitei o Itamaraty pela primeira vez, um servente muito amável me disse: "Minha senhora, eu acendi todas as luzes, porque o salão fica tão bonito com todas as luzes acesas! Quem sabe a senhora também não sente a beleza deste salão?" Em vez de ficar triste por não ver, eu senti a beleza do salão.

E ele tinha razão. Foi a generosidade com que ele procurou me dar uma ideia da beleza do salão que me tocou profundamente."

Dorina Nowill

20 comentários:

  1. Pôxa... Marthinha... não sei nem o que escrever... Só te digo que terminei teu texto com lágrimas nos olhos e com o coração quente... Que bela homenagem, que bela vida, que belo vínculo, que bela mulher..... Um abraço muito, muito apertado e muito emocionado!

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  2. Tô como a Estrela, muito emocionada.
    E quero te dizer algo que pensei ontem, durante o enterro, vendo toda a familia reunida: você é, entre os filhos e netos da D. Dorina, a mais parecida com ela.
    E por falar em vínculos, tem um fato que sempre me impressionou.
    No dia 30 de outubro de 1980 sua avó estava em Nova York discursando perante a Assembléia Geral das Nações Unidas. Não era um discurso qualquer. Era o ano Internacional dos Deficientes (declarado como tal pela ONU) e coube a ela fazer o discurso de abertura da convocação para a Assembléia Geral da ONU. Sem dúvida foi um dos momentos mais importantes da carreira internacional da sua avó.
    Aqui no Brasil no mesmo dia e na MESMA HORA você estava nascendo, em São Paulo, no HOSPITAL SANTA ISABEL (taí mais uma coincidência!).

    Assistirei com muito orgulho a sua estréia hoje a noite. Será uma linda homenagem a ela.
    Você sabe o quanto eu gostava dela (e o quanto ela gostava de mim!)
    E depois faremos um brinde à "ta MAMIE", com vodka, kir royal ou com uma taça de Veuve Cliquot.
    Beijos e todo o amor
    de ta Maman

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  3. Marthinha,
    lembro de uma tarde que passei com você na casa dela, queríamos fazer um filme de época naquela biblioteca incrivel. lembro do leite com chocolate quente que tomamos ouvindo histórias da av. Paulista no tempo em que passavam as carroças. Acho linda a idéia do filme, vá em enfrente.
    bjs
    Paula Mercedes

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  4. Que bacana, Marthinha. Apesar da imensa saudade que você já deve estar sentindo, ainda conseguir escrever um texto tão terno e bonito... uma doce homenagem à sua avó, uma mulher que deve ter sido mesmo uma lutadora. Que a lembrança e o exemplo dela sempre te acompanhem. Força e um enorme abraço.

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  6. lindo Martha... estou mto emocionada tb... incríveis memórias e carinho sua avó deixou.
    Forte abraço!

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  7. querida.
    tô aqui chorando e copiando seu texto pra levar pra minha vó que, mais cedo ou mais tarde, deve partir também.
    independente da fortaleza de mulher que dorina foi, do ser humano da raça que mais admiro, os guerreiros, do exemplo de vida que ela deixou, era também sua vó. e sobre muito do que escreve eu me identifico, me emociono e compartilho com você de toda dor e serenidade que essa hora pode trazer.
    celebremos então a garra e a beleza da sua vózinha. o céu deve estar em festa, amada.
    meus beijos são seus.
    talita castro.

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  8. ps. faltou dizer que minha vó não fez nem um décimo do que a sua fez pela humanidade. mas sempre teve uma personalidade guerreira como a sua e sempre despertou paixões por um número grande de pessoas. e eu vivo dizendo que quero registrar suas histórias e conversas e tudo o que for possível. e claro, nunca encontro tempo pra isso. teu texto e tua história fez disparar um alarme interno muito do barulhento. e eu só queria agradecer por esse recado especial que ganhei sem querer no meio do teu luto. obrigada por você ser essa querida sensível e guerreira que arregaça as mangas e conquista teu espaço. agora conhecendo mais de dorina, eu entendo o porquê.
    talita castro.

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  9. Obrigada, querida, por compartilhar esse momento tão seu, tão particular de dor, pela ausência de uma pessoa tão fantástica e que fez muita diferença nesse mundo cada vez mais caótico, que foi sua avó.
    Que ela descanse em paz e com certeza ela está perto de Nossa Senhora das Dores. Eu acredito nisso!

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  10. Que coisa linda, Martha!
    Fiquei comovido com seu relato, e estranho só tê-la conhecido naquele velório surreal, onde eu vi o ex-governador quase ser atropelado por uma horade de ceguinhos de todos os tamanhos, cores e credos, todos indo prestar reverentemente uma homenagem àquela mulher tão elegante... Que sorte para você, descender de tanta nobreza!!!

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  11. queridos,
    muito, muito obrigada! eu fico feliz de poder contar um pouco mais dela por aqui...é um momento especial mesmo. triste, mas bonito tb. obrigada pelo carinho de cada um.

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  12. Talita, fiquei om vontade de saber mais sobre sua avó tb. um bj grande.

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  13. Lindo texto! Maravilhoso você aproximar a vida de pessoas como ela para nós jovens que não a conhecemos pessoalmente. Me fizeste me emocionar agora, pois lembrei de histórias maravilhosas e com pérolas nunca ouvidas tb.... meus avós... e minha avó que foi responsável por toda a "civilização"da Ilha do Mel, mas que poucos sabem disso, apenas as autoridades, políticos e profissionais que na época entraram no seu projeto junto a UFPR.
    Querida parabéns pela sua grandeza! Bem, vi você em um teste que tinha uma grandeza espiritual muito grande!
    Continue brilhando, assim que eu conseguir organizar meus horários irei com certeza lhe ver nos palcos!
    Sucesso, Bia De Ferrante

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  14. Assim como minha querida filha Bia De Ferrante fiquei feliz e emocionada com o exemplo de vida de sua querida avó.
    Bia e seus irmãos foram netos dedicadissimos e fizeram da vida dos avós uma alegria e esperanças renovadas até os ultimos momentos.
    Como é bom ver a juventude cultuando a sabedoria e as virtudes de quem soube fazer a diferença.Parabens,Edeluz

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  15. Martha estou tentando deletar meu comentário para arrumar a concordância... e não estou conseguindo, me perdoe! Bia De Ferrante

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  16. Que lindo Martha. Despertou aquela emoção combinada com um sorriso.
    Vou esperar ansiosa por esse filme!
    Beijo grande

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  17. Martha

    Acabei de ler o texto e minha vontade imediata foi de te escrever...
    Voce faz jus ao nome que carrega...esteja certa
    Não te vejo faz muito tempo, mas tenho orgulho de ter conhecido sua avó e voce.
    Te acompanho a distância...quando possivel

    mil beijos

    Lucia Maregoni amiga de Regina Maura, lembra?

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