terça-feira, 16 de outubro de 2012

E se a gente?


Se eu estivesse em Paris agora em excelente companhia seria sim primavera. Eu e minha excelente companhia do sexo oposto atravessaríamos a rua com alguma altivez, por que apaixonados tem altivez própria, luz própria, ritmo. Eu diria para minha excelente companhia com a barba por fazer: tenho fome. Ele riria: você e sua fome. Que posso fazer? Eu retrucaria num pretérito muito aquém do perfeito. "Nada, vamos comer.", minha excelente companhia com a barba por fazer em camisa de linho mal passado me puxaria em direção ao supermercado e nós compraríamos uma garrafa de vinho tinto a 6 euros, um pacote de cerejas maduras a preço de banana, uma bandeja de salame, queijo e uma grande e crocante baguete. Minha excelente companhia com a barba por fazer em camisa de linho amassado e um sapato formidável seguraria minhas ancas na fila do caixa e diria: nosso primeiro piquenique.
"Meu Deus, não temos uma toalha xadreza!"eu gritaria, e ele com seu sorriso: on s'en fout! Sim , foda-se, completo eu, vamos usar sua camisa no lugar da toalha. E me encanto por uma senhora em conjunto de tailleur cor-de-rosa-bebê e chapéu combinando que aguarda na fila do caixa ao lado, enquanto minha excelente companhia, sua barba camisa e sapato, e eu vejo que ele tem o pensamento longe, entrega uma nota de vinte euros para a moça. Ele segura minha mão, “cuida das cerejas”, ordena e voltamos para a rua. Eu e minha excelente companhia de barba por fazer camisa amassada olhos doces e brilhantes como um alazão atravessamos um grupo de crianças entre cinco e oito anos vestidas em uniformes encardidos na saída da escola. Pequenos parisienses eu digo,  ao que minha adorável companhia sorri: futuros parisienses mal humorados, retruca. Minha excelente companhia ri para dentro enquanto rio para fora e sei que o ar que utilizamos para nos comunicar se encontra e se mistura em algum lugar no meio do caminho entre nossos pulmões e a estratosfera. Olho para a garotinha francesa que carrega uma mochila maior do que ela, como era chato usar uniforme, penso. Depois repito o pensamento em voz alta, feliz por estar de vestido, sapatos e bolsa a tiracolo. Minha companhia em barba por fazer, sapato de couro, olhos de cavalo, oscila entre um grande coração e sua ironia pontiaguda enquanto fala em voz grave baixa: tem um parque bonito ali. Minha mão não transpira há anos, mas tenho medo que o barulho da rua seja menor que os saltos que meu coração dá. Meu coração é mesmo um atleta, penso dentro do vestido coral, sapato e bolsa conhaque. Me empresta a baguete? digo, e só nos falta uma bicicleta para parecermos objetos de cena de um filme da Nouvelle Vague. Eu em coral e minha excelente companhia com  sua ironia pontiaguda, calça e cabelos cor-de-burro-quando-foge adentramos um parque tipo folha de calendário sem um só eletrônico nos bolsos. Nosso pequeno mundo não tem wifi, sinal de celular ou feed de notícias. Quebro a ponta da baguete e mastigo com furor um pedaço de pão enquanto minha adorável companhia com olhos de alazão, barba por fazer, sapatos formidáveis e mãos de agricultor procura um abridor de vinho no café mais próximo. Aproveito para montar o melhor sanduíche do mundo, e sim, arranco um punhado de grama e coloco entre  o queijo e o pão. Ou não, melhor não. E eis que volta minha linda companhia dentro de sua camisa mal passada, passando suas mãos de agricultor na barba que está por fazer, me olhando com seus olhos tristes de alazão, pisando firme em seus sapatos aceitáveis e sorrindo como se fosse o sacana que ele não é. Traz um abridor na mão. E por que você não abriu a garrafa lá?, pergunto. "Mas vai que a bêbada aqui resolve comprar outra garrafa no caminho...", ele ri. "E afinal, ganhei o abridor de cortesia." Eu também te daria um abridor, meu bem, se você fosse ao meu café com essa cara de excelente companhia que só você tem. Ao que meu par me pede como se me pedisse em casamento: 

“E se a gente fizesse tudo diferente? Tudo diferente do que já foi feito até hoje! Eu sei, eu sei”, ele emenda, “que talvez a gente acabe ainda mais igual por conta disso. Eu sei, mas e se? E se? E se a gente?” 

Eu sei do que ele está falando, minha adorável companhia, meu par, com sua barba pontiaguda, seu humor por fazer, seus olhos amassados, sua camisa formidável, seus sapatos cor-de-alazão e seu coração de agricultor. Minha excelente companhia quer reinventar a roda, o quadrado, o triângulo isósceles, o amor. “E se? E se a gente?”. A frase repercute em todos os cantos tristes e felizes do meu corpo, em cada quina da minha euforia. E antes que ele possa ter a chance de proferir o próximo “vamos”, mesmo sabendo que o mais provável é que fracassemos, antes mesmo que ele possa tomar ar para o começo da próxima frase, salto por cima dele e tasco-lhe um beijo afobado e confiante, derramando metade da garrafa de vinho que escorre por cima dos cabos de cereja, grama e farelos de pão. “E se?". Agarro sua nuca com minhas duas mãos e digo: vamos.

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