segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

estrelas


Antigamente férias era um lugar grande, amplo, uma espécie de galpão onde São Paulo cabia vazia num canto e a fazenda Santa Maria ocupava todos os centímetros restantes. Lá onde eu passei quase todos os janeiros da minha infância, torcendo para que o mês de fevereiro daquele ano tivesse mais de vinte e oito dias, e esperando aparentar quatorze anos para não ser barrada no baile de carnaval. Férias era um tempo que durava desde o último sinal da última sexta-feira de aula, até a arrumação dos cadernos na mochila, véspera do primeiro dia. Era um retrato onde meus avós eram velhinhos, mas nem tanto e minha mãe desfilava pelos cômodos como se tivesse acabado de sair de um filme de Eric Romher. Um lugar onde meu pai dormia e acordava com uma raquete de tênis na mão direita e eu vestia as mesmas roupas até encardir. Cada ano que passava era um dente que trocava ou uma nova cicatriz, como uma enorme na coxa direita, mal costurada por algum enfermeiro do posto de saúde de Cafelândia, lembro até hoje dos pontos apertados com linha preta.

Ontem vi um filme onde o Omar Sharif dizia para um menino: “Felicidade é fazer as coisas lentamente.” É o que tenho feito neste mês de janeiro aqui em São Paulo, trabalhado como se o sol batesse nas costas, bem lentamente. Talvez seja só uma reminiscência dos dias que passei no campo. Talvez na primeira semana de março todo este discurso já tenha ido por água abaixo e eu esteja em algum farol da Brasil com a Rebouças, com gotas de suor na testa, maldizendo o sujeito da saveiro da frente, placa de São José dos Campos, que parou no farol amarelo.

Talvez, mas por enquanto, o céu preto com milhões de pontos brancos, espetáculo noturno diário na fazenda da minha infância, pode estar a quatrocentos e cinqüenta quilômetros de distância, não importa, férias é abrir o livro, bem lentamente, e ter tempo para gostar de um poema tão simples como este:


Há estrelas brancas, verdes, azuis, vermelhas.
Há estrelas-peixes, estrelas-pianos, estrelas-meninas,
Estrelas-voadoras, estrelas-flores, estrelas-sabiás.
Há estrelas que vêem, que ouvem,
Outras surdas e outras cegas.
Há muito mais estrelas que máquinas, burgueses e operários:
Quase que só há estrelas.


do Murilo Mendes

5 comentários:

  1. Mes hommages a Eric Rohmer e aux Contes des quatre saisons (surtout le Conte d"été).
    Mes hommages aussi a D. Jovita e S. Guilherme.

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  2. Que lindo este poema, li Murilo Mendes nas férias também, olha que lindo isso: "Eu sou o olhar que penetra nas camadas do mundo, ando debaixo da pele e sacudo os sonhos. Não desprezo nada que tenha visto, todas as coisas se gravam pra sempre na minha cachola. Toco nas flores, nas almas, nos sons, nos movimentos, destelho as casas penduradas na terra, tiro os cheiros dos corpos das meninas sonhando".

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  3. Seu texto é um belo poema em prosa e me fez lembrar de uma descrição de outra infância, em outros tempos, em outro lugar mágico:
    "A luz caía do céu em cascatas de pura transparência, em trombas de silêncio e imobilidade. O ar era azul, podia-se apalpá-lo."
    Indochina, Rio Mekong, M. Duras

    Maria Garcia

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  4. Martha, adorei seu blog, belos textos e belas histórias. Até depois!

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