sábado, 15 de março de 2014

ação!



Moscou, 9 de março, 5 graus

 A comida do alojamento onde estamos hospedados, um retiro dos artistas do antigo cinema soviético, é cruel. De manhã um prato com uma salsicha, um ovo excessivamente cozido, um mingau oleoso, pão, queijo e chá. A noite uma papa de arroz com pedaços de carne ou frango. E assim seguimos a procura de um café decente. Mas o mais difícil é encontrar o ator para fazer o papel do Sasha.  Tivemos um casting exaustivo e memorável. Tatu sugeriu fazer um minuto de olho no olho entre eu e os candidatos e eu inventei um pequeno tema para improvisação. Charly nos dirigiu. O primeiro ator era simpático, mas sem carisma. O segundo tinha muito carisma, mas estava demais a vontade para um papel de tímido, e Charly achou ele velho demais para o filme. Embora eu também esteja velha para meu próprio papel. O outro era tão travado que achei que fosse paralisar diante de nós. O desespero foi tamanho  que fizemos um casting até com o garçom que nos atendeu no bar. Fim do dia vieram mais dois candidatos,  e eu me senti uma pedófila profissional, de tão novos que eram. O penúltimo era razoável, mas tinha uma cárie bem no dente da frente. E o derradeiro era um broto, e bom ator, mas era uma criança e  tinha um tersol em cima da pálpebra esquerda. Pensamos seriamente em chamar o verdadeiro Sasha para fazer o filme. Eu gosto da ideia, mas me constrange um pouco.  Já o Charly acha ele horrível nas fotos que viu na internet, mas é claro que ele está exagerando.

       (Martha e Michel)


10 de março, 7 graus
Tem uma gata preta gorda que mora na porta do refeitório ao lado de um pote de água, um de ração e outro que parece ser de feijão com presunto. Tem também alguns senhores e senhoras que moram no edifício, por aqui circulam e vez ou outra interagem conosco. Estamos com muita dificuldade de cumprir o roteiro no nosso cronograma, de conseguir documentar os momentos inusitados e de entender o que da história original funciona e o que deve ser repensado.  É difícil pensar na continuidade dos figurinos, e se isso realmente importa. O que é mais importante, captar o que está acontecendo agora ou registrar a ficção? Mas o inusitado sem a narrativa funciona? E a ficção sem a vivencia é válida neste tipo de projeto? É uma crise conceitual que junto com as quatorze horas por dia de filmagem está me deixando um bocadinho louca. O Sasha verdadeiro vinha hoje para o teste, o que poderia me causar sérios problemas conjugais, mas não veio, por que no meio do caminho descobrimos um ator perfeito, bonito e inteligente para o papel. Misha. Fiquei muito empolgada com ele,  que compreendeu totalmente o filme. Só que surgiu um pequeno probleminha no meio do caminho. Manu, que logo foi perguntando se ele tinha facebook e jogando seu olhar 43 para ele. Ele ficou absolutamente deslumbrado e agora meu ator, que deveria estar totalmente embasbacado por esta que vos fala, e estar concentrado em seu papel, fica convidando minha amiga para sair. Ok, somos todos profissionais e ninguém precisa estar afim de ninguém para fazer um par romântico. Acontece que na dinâmica desse filme, onde o roteiro é complementado pela improvisação e onde a vida imita a arte e vice versa, etc e tal, vai ficar difícil fazer um clima com o Sasha fake se ele só pensa na Manuela. Ódio. Estamos pensando seriamente em mudar esta história.

  (salada georgiana)

 11 de março, 4 graus
 A gata preta chama Asa, e sempre que podemos a colocamos em cena. Hoje acordei com o Charly sentado na penumbra do meu quarto filmando nosso despertar. Ontem a meia noite Michel Melamed chegou diretamente do Rio de janeiro para fazer o papel de Michel no filme, um dos lados de um quase triângulo amoroso que eu e Manu faremos com ele, ou faríamos, vai saber. Este making off tá tão louco que a gente não sabe mais se incorpora, muda, reescreve. Minha cabeça está prestes a fundir. Ao mesmo tempo o material de ficção está ficando bonito. Michel chegou numa pilha louca de ideias com uma garrafa de vodka consumada na mão. E já estou apaixonada pela loucura dele. Nosso professor, Vladimir é um bom diretor e a interpretação que ele fez de Sônia, minha personagem é bem interessante. Tenho um pouco de sono nas aulas, mas vá lá.  Adoro a Sônia, sua força, sua resignação, sua generosidade, é uma personagem linda. Talvez seja ela que esteja fazendo isso comigo: meu coração anda de manteiga, não posso ver uma pessoa feliz que tenho vontade de chorar, chorar de amor pela alegria alheia. Esse sentimento está me deixando esquisita e eu não sei se é algo bom ou ruim.  O Charly anda exausto e sobrecarregado, e também tentando entender qual o melhor caminho do filme. Eliane, nossa produtora está sempre a procura do melhor câmbio, e sofre com as negociações um tanto mafiosas do país. Sem contar que há sempre algo mal compreendido, um equipamento que veio errado, e outras complexidades do gênero. Rússia. Estou a procura de um novo casaco, não consigo usar a Sarita fora de cena e meu outro casaco não me esquenta o suficiente. Esfriou, e parece que amanhã neva.

     (Soraia, musa)

12 de março, 4 graus
Faz dois dias que tentamos assistir um dvd de “The Child” na van que nos leva para as locações. Geralmente durmo no meio. Fomos assistir a uma montagem de “O Jardim das Cerejeiras” no teatro de arte de moscou para captar algumas cenas e claro, metade da equipe dormiu. Saímos correndo no intervalo, e nem me senti culpada pela heresia cometida. Filmamos cenas no metrô, nas ruas, no mercado. A câmera grande causa estranheza e falta de naturalidade nas pessoas. A câmera pequena, que estamos usando para este tipo de cena, passa quase desapercebida. O Charly não tem o costume de dar o AÇÃO, talvez por que este filme não seja só uma ficção, mas também o costume de ir captando o que tiver pela frente. Num caso como este o AÇÃO se torna desnecessário ( acho que é esta a lógica dele), mas eu sou uma atriz que ligo um botão quando alguém grita esta palavra.  AÇÃO funciona para mim. E CORTA também, outra coisa que não existe aqui. Geralmente eu e Manu andamos quilômetros desnecessários por falta de um CORTA. 

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